Entrevista:O Estado inteligente

sábado, julho 05, 2008

O Ministério de Casos Especiais, de Nathan Englander

A ditadura universal

Um romance kafkiano sobre a repressão política,
por um prodígio da nova ficção americana


Moacyr Scliar

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Trecho do livro

Nascido em 1970 de uma família ortodoxa, o americano Nathan Englander estudou em escola judaica e morou em Jerusalém, onde, surpreendentemente, optou por abandonar a ortodoxia ao mesmo tempo em que se iniciava na literatura. Seu primeiro livro, Para Alívio dos Impulsos Insuportáveis (1999), foi recebido com entusiasmo. Embora americano, Englander não se restringiu, já nos contos de estréia, ao país natal. Usou como cenário qualquer país onde houvesse comunidade judaica. O mesmo acontece em O Ministério de Casos Especiais (tradução de Paulo Reis; Rocco; 440 páginas; 55 reais), um romance ambientado na Buenos Aires da ditadura militar e da "guerra suja" contra seus opositores.

O ponto de partida do romance é um episódio perturbador: o tráfico de mulheres judias da Europa para o Novo Mundo por uma organização conhecida como Tzvi Migdal. Tanto os cafetões como as prostitutas eram malvistos pelas comunidades judaicas e levavam uma vida à parte. Tinham, inclusive, cemitérios próprios. Somos então apresentados a Kaddish Poznan, filho de uma dessas prostitutas. Kaddish ganha dinheiro eliminando nomes das lápides dos cemitérios, quando o passado pode trazer problemas para as famílias. É casado com a sensata e corajosa Lilian, que trabalha numa seguradora; têm um filho (Pablo ou Pato), de 19 anos, jovem que, por causa de suas idéias esquerdistas, é seqüestrado pela repressão argentina.

Kaddish e Lilian integram, como as mães da Plaza de Mayo, aquele angustiado grupo de pais que procuram por seus filhos. Vivem uma trajetória kafkiana, na qual o chamado Ministério de Casos Especiais desempenha um papel central. Os contatos com funcionários adquirem uma conotação surrealista. Há um momento em que entregam a eles uma garota no lugar do filho seqüestrado. Kaddish e Lilian pedem ajuda a um general e sua esposa, a um líder da comunidade judaica, a um cirurgião plástico e a um capelão católico, a quem Lilian diz: "Salve o garoto nesta vida e fique com a alma dele na próxima". Kaddish encontra um homem que participou das operações em que jovens eram atirados de avião no estuário do Rio da Prata e começa a acreditar que Pato já não vive. Tenta um recurso extremo: rouba os ossos do sogro do general, para com eles fazer algum tipo de barganha.

O conhecimento de Englander sobre a ditadura argentina resulta dos livros que leu e de um período que passou em Buenos Aires. Sabiamente, ele optou por uma narrativa na qual as referências históricas e geográficas são mínimas. O que predomina são os diálogos, sempre vivos, temperados com humor amargo. E daí vem a força do livro. Em O Ministério de Casos Especiais a repressão ditatorial não é o problema de um país e de uma época: é um tema universal.


LIVROS

Trecho de O Ministério de Casos Especiais,
de Nathan Englander

Kaddish se juntou a Lillian no Ministério de Casos Especiais no dia em que o número dela foi chamado. Ele chegou atrasado. Tinha saído para comprar cigarros, depois para comprar jornais, e finalmente para buscar o almoço dos dois. Ainda assim, quando o número foi chamado à tarde, estava do lado de Lillian.

No percurso até a frente da sala, uma mulher estendeu uma senha para Kaddish.

_ Troque comigo. Por favor.

Ele desviou, mas foi andando com a cabeça virada, de olho na mulher. Ela também ficou de olho em Kaddish. Quando ele se sentou diante do funcionário, a mulher se levantou e, numa tentativa final, agitou a senha de um lado para o outro.

Lillian deu uma palmada brincalhona no marido, reconhecendo a boa sorte deles.

_ Você é um charme.

Os dois ficaram sentados diante de um rapaz que sequer levantou o olhar. Ele tinha o rosto afilado e usava óculos. Kaddish teve a impressão de que encarava a lâmina de uma faca. Depois de algum tempo, o atendente levantou rapidamente os olhos.

_ Número?

Lillian lhe entregou o pedaço de papel, que ele jogou numa cesta de papéis sem uma olhada sequer.

_ Passaportes - disse o rapaz, estendendo a mão sem olhar para eles.

_ Nós não trouxemos os passaportes - disse Lillian.

_ Sem passaportes? - perguntou ele. _ O assunto tem relação com alguma viagem?

_ Não _ respondeu Lillian.

_ Então vamos ver a carta.

_ Qual carta é essa? - indagou Kaddish.

No tom do burocrata cansado que preenche seus dias para ter algo com que se indignar ao refletir à noite, o atendente disse:

_ Não vou ficar sentado aqui discutindo o senhor.

Honestamente confuso, Kaddish olhou para Lillian.

_ Não estamos entendendo - disse ela.

_ A carta. O que dizia a carta do Ministério de Casos Especiais? Que assunto exigia a sua presença aqui? Vocês estiveram no exterior nos últimos seis meses? Solicitaram um visto para viajar dentro do bloco soviético?

_ Não há carta alguma, viagem ou visto - disse Lillian - Viemos por conta própria. Fomos informados...ouvimos falar...

_ Pare - disse o funcionário. Comprimiu os olhos com os dedos como quem tenta aliviar uma dor de cabeça, mas apertou-os com tanta força que Lillian achou que estava tentando começar uma ou até coisa pior. Depois o rapaz deixou cair os braços e encarou Lillian pela primeira vez. - Já sei. Juro que os outros se esforçam para fazer o sistema funcionar dessa maneira. Não sei como conseguem. Precisamos lidar com mil coisas, mas sempre eles mandam os pais me procurarem. Acertei? Alguém fugiu do ninho? Sumiu de casa?

- Desaparecido - disse Lillian.

O funcionário olhou para os outros atendentes como se estivessem realmente caçoando dele, como se fosse alvo de uma piada.

_ Malandros - disse ele, referindo-se aos colegas. Depois sacudiu o corpo e estendeu a mão. - Habeas.

Lillian manteve as duas mãos sobre a bolsa no colo e piscou. Kaddish repuxou a perna da calça e suspirou.

_ O senhor não me ameace - disse o funcionário - Isto aqui não é um bar, é um ministério do governo. Essa ameaça é a mesma coisa que uma agressão. É exatamente a mesma coisa, pelo que sei.

Kaddish virou-se para Lillian outra vez.

_ Ele não quer dizer coisa alguma com isso - disse ela - Nós não temos habeas-corpus. Nosso filho desapareceu.

_ Um relatório de polícia - disse o atendente em tom seco.

_ Lillian só abanou a cabeça.

_ Sala dois-sessenta-e-quatro. Desçam a escada e voltem ao saguão por onde entraram, mas peguem o outro lado, a outra porta e a outra escada até o outro lado deste andar.

Depois fez uma careta de deboche, encarando os colegas com os olhos semicerrados. Na mais rápida reviravolta que Lillian já testemunhara, fez sinal para o sujeito que lia as senhas e um número novo foi chamado.

Lillian e Kaddish desceram, atravessaram e subiram até que abriram a porta de uma escada que dava para o mais estreito dos corredores. Havia uma mesa, com as gavetas voltadas para eles bem no meio do caminho. Se houvesse alguém sentado ali, eles não poderiam entrar. Provavelmente era também por essa razão que um cavalheiro do lado direito da mesa, na parte mais curta. Invisíveis da escada, seus pés estavam apoiados sobre o canto da mesa. O sujeito tinha um chapéu Borsalino marrom colocado sobre o rosto para dormir mais facilmente, era óbvio. Três curtas penas azuis, arranjadas em forma de leque, estavam enfiadas na fita do chapéu.

Kaddish e Lillian pararam do lado esquerdo da mesa. Antes que pudessem pigarrear, o sujeito endireitou a cadeira e empurrou o chapéu para trás. À primeira vista, Lillian achou que se tratava de uma mulher, tão delicadas eram as feições dele. Imaginou que era por isso que ele deixara crescer um bigode esparso...para que as pessoas formassem uma opinião correta.

_ Mandaram a gente para a sala dois-sesenta-e-quatro - disse Kaddish.

A única coisa que havia sobre a mesa era um grampeador. Antes de responder, o sujeito bateu nervosamente sobre o objeto como se estivesse respondendo a eles em código. Depois apontou para um lugar atrás deles.

_ Vão por ali e depois dobrem.

Cutucou o chapéu para a frente outra vez, e recostou o corpo na cadeira. É por isso que ele usa esse chapéu, pensou Lillian. Até mais do que o bigode, aquilo fazia com que ela pensasse: Homem.

Encontraram a sala dois-sessenta-e-quatro, mas estava trancada. Bateram à porta e nas salas vizinhas. Esperaram alguns minutos e tentaram de novo. Depois voltaram vagarosamente para o corredor do sujeito que usava chapéu com penas de pássaro.

Sem saber como, entraram no corredor pela outra ponta, passando por trás do homem. Precisaram fechar uma das gavetas e, esgueirando-se, conseguiram passar. O sujeito nem se assustou, tampouco os reconheceu. Tinha uma larga fatia de provolone em uma das mãos e uma tesoura na outra. Depois de cortar a fatia ao meio, pegou uma régua e uma fatia de pão.

_ Está trancada - disse Lillian. - Não há ninguém na sala dois-sessenta-e-quatro. Ninguém atende à porta.


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