Trecho de O Ministério de Casos Especiais, de Nathan Englander Kaddish se juntou a Lillian no Ministério de Casos Especiais no dia em que o número dela foi chamado. Ele chegou atrasado. Tinha saído para comprar cigarros, depois para comprar jornais, e finalmente para buscar o almoço dos dois. Ainda assim, quando o número foi chamado à tarde, estava do lado de Lillian. No percurso até a frente da sala, uma mulher estendeu uma senha para Kaddish. _ Troque comigo. Por favor. Ele desviou, mas foi andando com a cabeça virada, de olho na mulher. Ela também ficou de olho em Kaddish. Quando ele se sentou diante do funcionário, a mulher se levantou e, numa tentativa final, agitou a senha de um lado para o outro. Lillian deu uma palmada brincalhona no marido, reconhecendo a boa sorte deles. _ Você é um charme. Os dois ficaram sentados diante de um rapaz que sequer levantou o olhar. Ele tinha o rosto afilado e usava óculos. Kaddish teve a impressão de que encarava a lâmina de uma faca. Depois de algum tempo, o atendente levantou rapidamente os olhos. _ Número? Lillian lhe entregou o pedaço de papel, que ele jogou numa cesta de papéis sem uma olhada sequer. _ Passaportes - disse o rapaz, estendendo a mão sem olhar para eles. _ Nós não trouxemos os passaportes - disse Lillian. _ Sem passaportes? - perguntou ele. _ O assunto tem relação com alguma viagem? _ Não _ respondeu Lillian. _ Então vamos ver a carta. _ Qual carta é essa? - indagou Kaddish. No tom do burocrata cansado que preenche seus dias para ter algo com que se indignar ao refletir à noite, o atendente disse: _ Não vou ficar sentado aqui discutindo o senhor. Honestamente confuso, Kaddish olhou para Lillian. _ Não estamos entendendo - disse ela. _ A carta. O que dizia a carta do Ministério de Casos Especiais? Que assunto exigia a sua presença aqui? Vocês estiveram no exterior nos últimos seis meses? Solicitaram um visto para viajar dentro do bloco soviético? _ Não há carta alguma, viagem ou visto - disse Lillian - Viemos por conta própria. Fomos informados...ouvimos falar... _ Pare - disse o funcionário. Comprimiu os olhos com os dedos como quem tenta aliviar uma dor de cabeça, mas apertou-os com tanta força que Lillian achou que estava tentando começar uma ou até coisa pior. Depois o rapaz deixou cair os braços e encarou Lillian pela primeira vez. - Já sei. Juro que os outros se esforçam para fazer o sistema funcionar dessa maneira. Não sei como conseguem. Precisamos lidar com mil coisas, mas sempre eles mandam os pais me procurarem. Acertei? Alguém fugiu do ninho? Sumiu de casa? - Desaparecido - disse Lillian. O funcionário olhou para os outros atendentes como se estivessem realmente caçoando dele, como se fosse alvo de uma piada. _ Malandros - disse ele, referindo-se aos colegas. Depois sacudiu o corpo e estendeu a mão. - Habeas. Lillian manteve as duas mãos sobre a bolsa no colo e piscou. Kaddish repuxou a perna da calça e suspirou. _ O senhor não me ameace - disse o funcionário - Isto aqui não é um bar, é um ministério do governo. Essa ameaça é a mesma coisa que uma agressão. É exatamente a mesma coisa, pelo que sei. Kaddish virou-se para Lillian outra vez. _ Ele não quer dizer coisa alguma com isso - disse ela - Nós não temos habeas-corpus. Nosso filho desapareceu. _ Um relatório de polícia - disse o atendente em tom seco. _ Lillian só abanou a cabeça. _ Sala dois-sessenta-e-quatro. Desçam a escada e voltem ao saguão por onde entraram, mas peguem o outro lado, a outra porta e a outra escada até o outro lado deste andar. Depois fez uma careta de deboche, encarando os colegas com os olhos semicerrados. Na mais rápida reviravolta que Lillian já testemunhara, fez sinal para o sujeito que lia as senhas e um número novo foi chamado. Lillian e Kaddish desceram, atravessaram e subiram até que abriram a porta de uma escada que dava para o mais estreito dos corredores. Havia uma mesa, com as gavetas voltadas para eles bem no meio do caminho. Se houvesse alguém sentado ali, eles não poderiam entrar. Provavelmente era também por essa razão que um cavalheiro do lado direito da mesa, na parte mais curta. Invisíveis da escada, seus pés estavam apoiados sobre o canto da mesa. O sujeito tinha um chapéu Borsalino marrom colocado sobre o rosto para dormir mais facilmente, era óbvio. Três curtas penas azuis, arranjadas em forma de leque, estavam enfiadas na fita do chapéu. Kaddish e Lillian pararam do lado esquerdo da mesa. Antes que pudessem pigarrear, o sujeito endireitou a cadeira e empurrou o chapéu para trás. À primeira vista, Lillian achou que se tratava de uma mulher, tão delicadas eram as feições dele. Imaginou que era por isso que ele deixara crescer um bigode esparso...para que as pessoas formassem uma opinião correta. _ Mandaram a gente para a sala dois-sesenta-e-quatro - disse Kaddish. A única coisa que havia sobre a mesa era um grampeador. Antes de responder, o sujeito bateu nervosamente sobre o objeto como se estivesse respondendo a eles em código. Depois apontou para um lugar atrás deles. _ Vão por ali e depois dobrem. Cutucou o chapéu para a frente outra vez, e recostou o corpo na cadeira. É por isso que ele usa esse chapéu, pensou Lillian. Até mais do que o bigode, aquilo fazia com que ela pensasse: Homem. Encontraram a sala dois-sessenta-e-quatro, mas estava trancada. Bateram à porta e nas salas vizinhas. Esperaram alguns minutos e tentaram de novo. Depois voltaram vagarosamente para o corredor do sujeito que usava chapéu com penas de pássaro. Sem saber como, entraram no corredor pela outra ponta, passando por trás do homem. Precisaram fechar uma das gavetas e, esgueirando-se, conseguiram passar. O sujeito nem se assustou, tampouco os reconheceu. Tinha uma larga fatia de provolone em uma das mãos e uma tesoura na outra. Depois de cortar a fatia ao meio, pegou uma régua e uma fatia de pão. _ Está trancada - disse Lillian. - Não há ninguém na sala dois-sessenta-e-quatro. Ninguém atende à porta. |