Entrevista:O Estado inteligente

sábado, julho 05, 2008

J.R. Guzzo Pernil gordo


"Para cada vez mais gente, e com o incentivo cada vez maior do poder público, empresas como Vale, Alcoa e Cargill são vistas como um pernil gordo, de onde sempre se pode tirar uma fatia – e sempre em nome dos pobres. Não há notícia, até hoje, de nenhum benefício concreto que esse tipo de postura tenha trazido para eles. Em vez de se tornarem cidadãos, são incentivados a se tornar parasitas"

A Vale, a maior empresa mineradora do Brasil, está envolvida em mais um problema no Pará. É apenas o último de uma série que não dá o menor sinal de estar perto do fim – algo perfeitamente natural quando se leva em conta que os "movimentos sociais", sempre com apoio de alguma facção da burocracia oficial, descobriram há tempos que criar caso com empresas de grande porte, dinheiro em caixa e uma reputação internacional a defender é um excelente negócio no Brasil de hoje. O incentivo para quem opera nesse ramo é a idéia geral, cada vez mais aceita, de que empresas como a Vale vivem em situação de pecado; se fazem tanto sucesso é porque estão, de algum jeito, do lado do mal. Sempre há ótimas chances, assim, de sair levando vantagem numa disputa com elas. Como uma companhia que se dedica à extração de minérios, opera na Amazônia e ocupa tanta terra para suas atividades pode ter razão em alguma coisa, seja lá o que for? Se do outro lado do conflito estiverem pessoas pobres, ou descritas como tal, fica tudo mais fácil ainda. No pior dos casos, acaba saindo uma "negociação" e a empresa concorda em ceder isso ou aquilo para livrar-se do problema – até aparecer o próximo.

O episódio mais recente da coleção, segundo relato dos repórteres Eduardo Scolese e João Carlos Magalhães, da Folha de S.Paulo, refere-se a uma possível queixa do Incra, na qual a Vale é citada por ter comprado, entre 2003 e 2007, o direito de ocupar os lotes de 53 assentados num projeto de reforma agrária no interior do Pará – na área onde está investindo cerca de 2 bilhões de dólares para a implantação, já avançada, de uma mina de níquel. A empresa pagou aos assentados até 9.500 reais o alqueire, o triplo do preço de mercado. Na hora de fechar o negócio, não parece ter havido objeções; todos receberam seu dinheiro e deixaram a área. Mas uma parte dos vendedores, agora, diz que foi iludida e se arrepende da transação. Não está claro se pretendem devolver o dinheiro que lhes foi pago. Informa-se, apenas, que estão infelizes e que autoridades do Incra, de quem receberam os lotes, estão mais infelizes ainda – estudam, no momento, que tipo de providências poderiam tomar contra a Vale.

Segundo as normas em vigor, os assentados em projetos de reforma agrária não podem vender os lotes que receberam; na teoria, quem não quer mais a sua área tem de devolvê-la ao Incra, que a entregará, também na teoria, a um novo interessado. Na prática, é claro, vive acontecendo a venda de lotes por assentados que ficam com o dinheiro, vão embora e eventualmente recebem um novo pedaço de terra em outro lugar. É igualmente claro que fica tudo por isso mesmo – a menos que o comprador seja alguém como a Vale. Aí aparece uma oportunidade de ganho, em dinheiro ou em ideologia, e a coisa fica complicada. Complicada só para o comprador, naturalmente, pois o vendedor é pobre, e em sua condição de pobre nunca pode estar errado, segundo a melhor doutrina em vigor na máquina pública brasileira.

A Vale sustenta que não fez nada de ilegal: diz que o Incra acompanhou as transações diretamente, desde o começo, e que não pagou aos assentados pela propriedade da terra, mas sim a título de indenização pelas benfeitorias existentes nos lotes. O episódio, de uma forma ou de outra, acabará tendo o seu desfecho no devido tempo. A questão que fica, mais uma vez, é a crescente insegurança que tantas empresas enfrentam para tocar o seu negócio no Brasil atual, sobretudo em lugares como o Pará, onde os sinais da existência de leis na vida real vão se tornando a cada dia menos visíveis. Também ali, recentemente, outra empresa de mineração, a Alcoa, comprou uma área de mata nativa, vizinha ao local onde está instalando uma operação de beneficiamento de bauxita, para preservar o verde – e mostrar que a atividade industrial pode conviver com a defesa do ambiente. Má idéia. A mata foi invadida por sem-terra que derrubaram quase todas as árvores, na certeza de que destruir a propriedade de empresas como a Alcoa é hoje em dia um procedimento aceito como normal pela autoridade pública; faz parte da "dinâmica social". E a Alcoa? Se tiver sorte, não será multada pelo Ibama.

Empresas como Vale, Alcoa, Cargill (que há mais de um ano enfrenta todo tipo de dificuldade para operar um porto de exportação de soja em Santarém, também no Pará) e tantas outras não são consideradas como um fator de progresso num ambiente de miséria. Não se leva em conta que produzem renda, impostos, empregos e oportunidades, cumprem a legislação trabalhista e não operam com caixa dois. Para cada vez mais gente, e com o incentivo cada vez maior do poder público, são vistas como um pernil gordo, de onde sempre se pode tirar uma fatia – e sempre em nome dos pobres. Não há notícia, até hoje, de nenhum benefício concreto que esse tipo de postura tenha trazido para eles. Podem, aqui e ali, acabar levando uns trocados, mas sua vida não melhora em nada; em vez de se tornarem cidadãos, são incentivados a se tornar parasitas. Ganhar, mesmo, só ganham os profissionais do mercado da pobreza.

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