Entrevista:O Estado inteligente

terça-feira, julho 22, 2008

A franqueza de Amorim

O Brasil não aceitará a responsabilidade por mais um fracasso das negociações globais de comércio, disse o chanceler Celso Amorim, nivelando os termos da conversa logo nas preliminares da reunião ministerial aberta em Genebra nessa segunda-feira. Nivelar é uma boa palavra. Na sexta-feira, o comissário de Comércio da União Européia, Peter Mandelson, havia acusado o Brasil de estar sempre por trás dos vários impasses da Rodada Doha. Comentários semelhantes foram feitos mais de uma vez por autoridades americanas, igualmente empenhadas em culpar os emergentes, principalmente os maiores e mais ativos nas discussões, pela demora em se chegar a um acordo.

O chanceler brasileiro, segundo alguns, passou da conta ao descrever a insistência nessas acusações como aplicação prática do ensinamento de Josef Goebbels, o chefe da propaganda nazista: a mentira repetida torna-se aceita como verdade. O ministro Amorim talvez não tenha calculado o efeito de sua comparação - a negociadora chefe dos Estados Unidos, Susan Schwab, mostrou-se ofendida, por ser filha de sobreviventes do holocausto. Muito bem, exclua-se o nome de Goebbels, até porque ele não foi o primeiro a perceber o vínculo entre repetição e persuasão. Com ou sem a citação, o ministro brasileiro está certo. Este é o dado essencial.

Em 2003, em Cancún, a conferência ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC) fracassou em conseqüência de um impasse entre europeus, africanos e asiáticos. No mesmo dia, a delegação americana jogou a culpa no Brasil e noutros membros do Grupo dos 20. Essa versão, repetida muitas vezes, acabou sendo aceita como verdadeira e citada em muitos artigos.

A declaração de Amorim, ao contrário da avaliação de alguns analistas, não deve ter enfraquecido o Brasil nesta fase crucial das negociações. Mais provavelmente, deve ter servido para tornar mais claras as condições da conversa e para mostrar o peso da responsabilidade de cada um. Se americanos e europeus querem de fato um acordo razoável, devem cumprir sua parte e oferecer concessões significativas no comércio agrícola, reduzindo de fato os subsídios e diminuindo ou eliminando barreiras. O esboço de acordo sobre agricultura, no entanto, apresenta o risco de retrocesso nas discussões. Abre espaço para os países desenvolvidos listarem um grande número de produtos "sensíveis" e ampliarem o seu protecionismo. O Brasil rejeita essa possibilidade e, ao mesmo tempo, cobra maior acesso a mercados e um corte real de subvenções. O momento é propício para essa redução, porque os preços devem continuar elevados no mercado internacional por alguns anos.

O chanceler brasileiro também reafirmou a disposição de negociar com maior flexibilidade a abertura do mercado para produtos industriais. Ele já anunciou essa disposição mais de uma vez. Mas, para avançar nas ofertas, precisa estar seguro das intenções do outro lado e da extensão real das concessões na área agrícola.

A negociação é particularmente complicada, para o Brasil, porque o país é membro de uma união aduaneira, o Mercosul, e todos os sócios devem concordar quanto ao grau de abertura de seus mercados para produtos industriais. Quanto menores as concessões do mundo rico para o comércio do agronegócio, maior será a resistência da Argentina, mais protecionista que o Brasil na área industrial.

O esboço de acordo para o setor agrícola também amplia as possibilidades de protecionismo em várias economias emergentes, como Índia, Indonésia e China, menos competitivas na produção rural.

Esses países também têm interesses diferentes dos brasileiros em alguns aspectos do comércio de bens industriais. Qualquer deles pode criar obstáculos decisivos a um acordo global de comércio - sem falar em alguns sul-americanos, como Bolívia e Venezuela.

As possibilidades de um final feliz para a reunião de ministros em Genebra parecem muito limitadas, neste momento. Se o encontro for um sucesso, ainda restará o trabalho de conseguir o apoio da maioria dos membros da OMC, porque só os principais pesos pesados e médios participam das negociações desta semana. Se, no entanto, estes alcançarem um entendimento, a parte mais difícil do trabalho terá sido provavelmente concluída.

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