O chanceler brasileiro, segundo alguns, passou da conta ao descrever a insistência nessas acusações como aplicação prática do ensinamento de Josef Goebbels, o chefe da propaganda nazista: a mentira repetida torna-se aceita como verdade. O ministro Amorim talvez não tenha calculado o efeito de sua comparação - a negociadora chefe dos Estados Unidos, Susan Schwab, mostrou-se ofendida, por ser filha de sobreviventes do holocausto. Muito bem, exclua-se o nome de Goebbels, até porque ele não foi o primeiro a perceber o vínculo entre repetição e persuasão. Com ou sem a citação, o ministro brasileiro está certo. Este é o dado essencial.
Em 2003, em Cancún, a conferência ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC) fracassou em conseqüência de um impasse entre europeus, africanos e asiáticos. No mesmo dia, a delegação americana jogou a culpa no Brasil e noutros membros do Grupo dos 20. Essa versão, repetida muitas vezes, acabou sendo aceita como verdadeira e citada em muitos artigos.
A declaração de Amorim, ao contrário da avaliação de alguns analistas, não deve ter enfraquecido o Brasil nesta fase crucial das negociações. Mais provavelmente, deve ter servido para tornar mais claras as condições da conversa e para mostrar o peso da responsabilidade de cada um. Se americanos e europeus querem de fato um acordo razoável, devem cumprir sua parte e oferecer concessões significativas no comércio agrícola, reduzindo de fato os subsídios e diminuindo ou eliminando barreiras. O esboço de acordo sobre agricultura, no entanto, apresenta o risco de retrocesso nas discussões. Abre espaço para os países desenvolvidos listarem um grande número de produtos "sensíveis" e ampliarem o seu protecionismo. O Brasil rejeita essa possibilidade e, ao mesmo tempo, cobra maior acesso a mercados e um corte real de subvenções. O momento é propício para essa redução, porque os preços devem continuar elevados no mercado internacional por alguns anos.
O chanceler brasileiro também reafirmou a disposição de negociar com maior flexibilidade a abertura do mercado para produtos industriais. Ele já anunciou essa disposição mais de uma vez. Mas, para avançar nas ofertas, precisa estar seguro das intenções do outro lado e da extensão real das concessões na área agrícola.
A negociação é particularmente complicada, para o Brasil, porque o país é membro de uma união aduaneira, o Mercosul, e todos os sócios devem concordar quanto ao grau de abertura de seus mercados para produtos industriais. Quanto menores as concessões do mundo rico para o comércio do agronegócio, maior será a resistência da Argentina, mais protecionista que o Brasil na área industrial.
O esboço de acordo para o setor agrícola também amplia as possibilidades de protecionismo em várias economias emergentes, como Índia, Indonésia e China, menos competitivas na produção rural.
Esses países também têm interesses diferentes dos brasileiros em alguns aspectos do comércio de bens industriais. Qualquer deles pode criar obstáculos decisivos a um acordo global de comércio - sem falar em alguns sul-americanos, como Bolívia e Venezuela.
As possibilidades de um final feliz para a reunião de ministros em Genebra parecem muito limitadas, neste momento. Se o encontro for um sucesso, ainda restará o trabalho de conseguir o apoio da maioria dos membros da OMC, porque só os principais pesos pesados e médios participam das negociações desta semana. Se, no entanto, estes alcançarem um entendimento, a parte mais difícil do trabalho terá sido provavelmente concluída.