Entrevista:O Estado inteligente

domingo, julho 20, 2008

Daniel Piza

Desafinando

sinopse

Daniel Piza, E-mail: daniel.piza@grupoestado.com.br Site: www.danielpiza.com.br


É curioso como a bossa nova é sempre lembrada como "tradução de época", como expressão de um período supostamente feliz e glamouroso em que o Brasil mostrou todo seu potencial para ser uma civilização-sem-os-problemas-da-civilização. Não resta dúvida de que 1958 foi um ano memorável, com o lançamento de João Gilberto, a consagração de Pelé na Suécia e todo um clima de otimismo em torno de Juscelino Kubitschek. E não resta dúvida de que as formas fluidas da bossa, do futebol-arte ou de Niemeyer foram e são influências poderosas, que marcam todos os criadores futuros por sua descontração, por sua leveza. Mas daí a encaixotar tudo num bloco unívoco, envelopado por nostalgia, é injusto até com eles mesmos. Uma civilização não se sustenta apenas em chavões sobre alegria, tão caros a políticos oligárquicos e narradores esportivos, ou em teses intelectuais sobre o "lado bom da cordialidade" e as vantagens inerentes à mistura racial.

Foi visitando a Rússia em 1999, dez anos depois da queda do Muro de Berlim, que me dei conta de que eles não têm uma memória de democracia - foram séculos de absolutismo e décadas de totalitarismo - e nós, brasileiros, temos, em boa parte dominada pelos anos JK. Por isso, democracia e identidade nacional são palavras que para os russos têm sido contaminadas, confundidas com corrupção e desagregação. A democracia brasileira pós-1985 também está carregada desses problemas, mas a existência de referências anteriores ao regime militar é muito importante, até mesmo para que se cobre grandeza parecida. Isso tudo não significa, porém, que seja bom esquecer os problemas da época, caindo numa mitificação generalizada, e que seja correto associar essas manifestações criativas a um governo específico ou a um ou outro ano específico (1956, afinal, teve obras-primas literárias que 1958 não teve, como as de Rosa e João Cabral).

Já escrevi que um dos aspectos mais interessantes da bossa nova, e que o livro clássico de Ruy Castro deixa claro, é que ela nunca foi um "movimento", ou seja, algo que um grupo de pessoas deliberou criar e divulgar para espantar os burgueses ou lançar um projeto de sociedade. Ainda bem. Ela tem influência óbvia da música americana, especialmente de Gershwin e do cool jazz, e ao mesmo tempo pertence medularmente à tradição da canção brasileira, como renovação do samba e até do choro. Logo, é "antropofágica", por ter deglutido uma influência e a devolvido de modo diferente - tanto que muitos jovens músicos, como Brad Mehldau, Stacey Kent ou Esperanza Spalding, veneram a MPB -, mas jamais precisou fazer proselitismo sobre Pindorama, essa terra livre da lógica repressiva dos europeus. Ao contrário de seus admiradores e seguidores, não confundiu arte e sociologia.

Eles também jamais falaram em "ruptura" com a tradição. Ao contrário. João Gilberto é um incansável repetidor das canções dos anos 30 e 40, que reinventa por um meticuloso exercício de aproximações harmônicas e rítmicas, e sempre reverenciou a arte de Orlando Silva, Mário Reis e outros intérpretes precursores. O ídolo maior de Tom Jobim sempre foi Villa-Lobos, tanto o autor de modinhas e valsas quanto o autor de obras orquestrais inspiradas em Bach ou Stravinski. Não só a bossa nova, mas muitas daquelas criações associadas a 1958 são produto de buscas e façanhas realizadas desde os tempos do primeiro Getúlio Vargas, quando samba, futebol e o pensamento de Gilberto Freyre foram incorporados a uma política de Estado. No entanto, surgiram num contexto de uma sociedade mais independente e aberta. JK, afinal, não gostava de João Gilberto, mas de uma toada do folclore mineiro, Peixe Vivo.

Por sinal, João Gilberto sozinho é o melhor antídoto às reduções essencialistas da cultura brasileira, que seria "barroca" ou "dionisíaca" por definição, de Aleijadinho a Glauber, de Gregório de Mattos a Zé Celso. Felizmente a cultura brasileira é mais do que isso e João Gilberto fez na canção o que João Cabral fez na poesia: um trabalho de rigor, de concisão, de uma disciplina tão cultivada que torna ainda mais emocionante aquilo que outros estragam com o esparramar sentimental. E nisso eles tiveram muitos antecessores, como Machado, Drummond e Graciliano. Todos os grandes criadores brasileiros, na realidade, não cabem nessa "verdade tropical" de que a estética nacional se divide em partidários da expressão contra advogados da construção. Todos mesclam doses de ambas, mas sem acreditar no "hibridismo" fácil hoje tão em moda.

A bossa nova também poderia ser tradução de uma época no mau sentido, com suas letras ingênuas, cantadas pela juventude alienada da cidade maravilhosa - e talvez características de uma época que nutria ilusões como a de que a transferência da capital fosse puxar o desenvolvimento para o interior e ao mesmo tempo não preparava o País para o futuro ampliando a educação pública, o planejamento familiar, a distribuição agrária e o liberalismo produtivo. Mas isso seria extremamente injusto, porque arte não tem compromisso ideológico e as letras da bossa eram simplórias por uma procura de swing e simplicidade; tanto é que depois, com Chico Buarque e outros, ganhou uma sofisticação verbal comparável à harmônica. Quem acha o estilo "easy listening" ou "nhem-nhem" é porque não tem ouvido privilegiado ou escutou as gravações erradas. É o mesmo que não se dar conta da consciência tática da seleção de 1958.

Não há nada de errado em querer que o Brasil seja uma "civilização tropical", que tenha um norte a perseguir a partir de uma história em grande parte fabricada - como os EUA fizeram ao dotar a natureza de passado e projetar um futuro ao qual chegaram diligentemente, embora não sem traumas. Sim, nacionalidades precisam de mitos, de metáforas aglutinadoras. Mais fundamental, no entanto, é revê-los em face da realidade, sempre em transformação, até para que tenham uma chance. O Brasil suave dos mitólogos (ou mitômanos) não confere com o noticiário sobre crimes, máfias e injustiças; ao mesmo tempo, não é o apocalipse que espancadores retratam. A bossa nova deve ser circunscrita ao primeiro mundo das artes, porque só a partir dali poderá ser entendida como uma inspiração de "doçura e luz", sempre a desafinar das doutrinas e das hierarquias que tentam lhe impor.

RODAPÉ

Li muitos dos livros de ficção recém-lançados com grande alarde por causa de eventos como a Flip - livros de David Sedaris, Ingo Schulze, João Gilberto Noll, Richard Price e outros. Mas nenhum substitui uma página de uma novela sem grandes pretensões de Philip Roth como Fantasma Sai de Cena (Companhia das Letras, tradução de Paulo Henriques Britto), que comentei aqui quando publicada em inglês (Exit Ghost). É o último livro com Nathan Zuckerman, o famoso escritor alter ego de Roth, que aqui é um sujeito que decide morar em Nova York de novo depois de muitos anos, aparentemente pela atração que sente por duas mulheres, e acaba vendo na cidade os vultos conradianos do passado (Roth releu todo o Conrad antes de escrever a história).

Há mais uma vez aquela mistura única de descrição com ensaio - comentários que vão das canções de Richard Strauss aos textos de George Plimpton sobre futebol - e não é difícil ouvir a própria voz do autor na de Amy, quando ela escreve que "a literatura foi expulsa como influência séria sobre a percepção da vida", criticando o jornalismo cultural que só trata de celebridades, leva a sério cursos de "redação criativa" e ignora que a ficção "requer pensamento". Poucos escritores influenciam minha percepção da vida tanto quanto Roth.

Outra decepção é o mais recente livro de J.M. Coetzee, Diário de Um Ano Ruim (Companhia das Letras, tradução de José Rubens Siqueira). Coetzee, autor do ótimo Desonra, também tenta aproximar ensaio e narrativa, mas de modo sistemático: seus artigos sobre democracia, música e religião correm pelo alto das páginas, enquanto no rodapé se desenrola uma história narrada por uma imigrante filipina; a idéia é contrapor a racionalização liberal sobre o mundo moderno e o testemunho pessoal sobre suas crueldades. Mas o problema é que, considerando cada parte isoladamente, temos uma coletânea de artigos ingênuos sotoposta por um conto sem muita imaginação, como o próprio Coetzee reconhece ao comparar sua fase com García Márquez.

POR QUE NÃO ME UFANO

O foco da operação Dantas-Nahas deveria ser transformar a investigação em punição e esclarecer os laços políticos de que os "financistas" se valeram para erguer uma organização tão poderosa. O que só se tem observado é a perda desse foco no jogo de cena entre alas distintas do mesmo mal. A PF de um lado, com seus métodos abusivos, midiáticos e clandestinos, e o STF do outro, com sua fábrica de habeas-corpus, tomaram o primeiro plano da partida. O governo faz jogo de cintura entre um e outro, tentando ao máximo esconder peças como Gilberto Carvalho, Luiz Eduardo Greenhalgh e José Dirceu, e a "oposição" faz o jogo do silêncio, porque, como no mensalão, tudo começou ali. A verdade factual e o interesse público são cartas fora do baralho.



''João Gilberto sozinho é o melhor antídoto às reduções essencialistas da cultura brasileira''

''Nenhum romance recente substitui uma página de novela sem grandes pretensões de Philip Roth''


Aforismos sem juízo
Se nossas lembranças não fossem na maioria vagas, não teríamos futuro.

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