...ainda falta muito para que o país resolva os problemas
que levaram o caos aos aeroportos brasileiros
Ronaldo Soares
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Um ano se passou desde o pior desastre da história da aviação brasileira. Foi em 17 de julho do ano passado que o Airbus A320 da TAM se chocou contra um galpão da empresa, próximo à cabeceira do Aeroporto de Congonhas, em São Paulo, matando 199 pessoas. As cenas de dor e desespero das famílias e a angustiante operação de resgate dos corpos ainda estão presentes. No auge da tragédia, quando a comoção pública chegou ao limite, imaginava-se que o episódio teria ao menos uma função didática. Serviria como exemplo da necessidade de mudanças estruturais na aviação brasileira, que registrara, dez meses antes, outra tragédia. Em setembro de 2006, um Boeing da Gol e um jato Legacy fabricado pela Embraer haviam se chocado no ar, matando 154 pessoas. No saguão dos aeroportos, os passageiros se amontoavam em razão dos intermináveis atrasos e dos cancelamentos de vôos. As autoridades, como de costume nessas ocasiões, anunciaram uma série de medidas saneadoras. As principais foram a redefinição das rotas, maior fiscalização sobre as empresas e o fim da crise dos controladores de vôo. Hoje, as salas de embarque voltaram à vida normal. Os atrasos reduziram-se a níveis suportáveis, mas as raízes do problema estão ainda fincadas no solo. Para avaliar os avanços desde então, VEJA fez um levantamento das condições atuais do setor aéreo. A conclusão é que a aparente tranqüilidade esconde deficiências ainda não sanadas. Como demonstra o quadro ao lado, nenhuma das medidas anunciadas foi totalmente implementada.
A maior evidência disso está nos três principais aeroportos do país: Guarulhos, Congonhas e Brasília. Eles continuam sobrecarregados e operam acima da capacidade (veja quadro). A Associação Internacional de Transporte Aéreo (Iata) tem um parâmetro para medir o nível de saturação das instalações aeroportuárias. Ele é a resultante do cruzamento de dois indicadores: a quantidade de passageiros nos horários de pico e a estrutura das diferentes áreas – balcões de check-in, setor de bagagens, área de embarque etc. Dependendo das condições de operação, atribui-se um conceito. Ele varia de "A", que indica uma situação confortável, a "F", que significa o colapso. A classificação "A" só é possível para aqueles recém-inaugurados. Portanto, é aceitável o conceito "C", indicador de "condições suportáveis", nos momentos de grande movimento. Mas os três principais aeroportos brasileiros têm operado entre o "D" e o "E". Como concentram 55% das escalas e conexões, e 40% dos passageiros do país, os efeitos de uma pane operacional seriam sentidos nacionalmente.
Nada indica que essa situação esteja perto de mudar. Do 1,1 bilhão de reais previsto no ano passado para ampliações e reformas de aeroportos, apenas 35% foram utilizados, segundo levantamento do deputado Otavio Leite (PSDB-RJ), que atuou na CPI do Apagão Aéreo. Pelas contas da Infraero, o aproveitamento foi de 43% – ainda assim, um percentual desanimador. Para a manutenção das instalações, havia disponíveis 345 milhões de reais. Aproveitou-se apenas a metade (53%). Além da má gestão dos recursos, uma parte da expansão da estrutura aeroportuária empacou na fiscalização do Tribunal de Contas da União. Em Guarulhos, Vitória e Macapá, as obras estão paradas porque o TCU encontrou indícios de irregularidade.
Ter aeroportos operando tão próximo do limite é arriscado porque o número de passageiros não pára de aumentar em um país em processo de crescimento econômico. Se houver um salto repentino, podem se repetir as cenas de caos nas salas de embarque. E, mais grave ainda, falta planejamento a médio e longo prazo: não há no horizonte projetos de grande porte para suprir o crescimento da demanda. Estima-se que os vinte principais aeroportos terão, nos próximos sete anos, um volume de passageiros 50% superior ao atual.
Logo após o acidente do A320, o ministro da Defesa, Nelson Jobim – ele próprio alçado ao cargo como parte do pacote de soluções –, promoveu um rearranjo nas rotas aéreas. Enquadrou os controladores de vôo que emperraram o país realizando uma operação-padrão, entre março e julho do ano passado, e conseguiu fazer com que a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) finalmente começasse a conversar com a Empresa Brasileira de Infra-Estrutura Aeroportuária (Infraero), a Aeronáutica e as companhias aéreas. Foram medidas salutares, mas insuficientes. A relativa tranqüilidade de agora se apóia em um fator adicional. O ritmo de crescimento da demanda de passageiros arrefeceu. Em 2004 e 2005, aumentou em padrão chinês, 16%. E desde o ano passado estabilizou-se em 8%, metade.
O melhor exemplo de timidez na ação governamental está em Congonhas, o aeroporto mais importante do país. A solução apresentada para diminuir o risco de acidentes ali era a de reduzir em 40% os pousos e as decolagens. Essa redução foi, no entanto, de apenas 20%. O aeroporto segue em seu ritmo frenético, com 36.500 usuários e quase 500 aviões de passageiros pousando e decolando todos os dias. Continua sendo um ponto de conexão de vôos para todos os cantos do Brasil, embora cercado de prédios e casas por todos os lados e sem espaço para crescer. Também se previam melhorias na pista. O grooving, sistema que facilita o escoamento de água, foi feito. Mas outro problema, a reduzida extensão de sua pista, acabou se agravando. Para criar uma área de escape, encolheu-se em 150 metros cada cabeceira. E o problema não foi totalmente solucionado. Quatro especialistas ouvidos por VEJA dizem que a medida é insuficiente para tornar a pista totalmente segura. O ideal seria instalar na área de escape um piso especial que ajuda a frear aviões que enfrentam problemas na aterrissagem e acabam parando fora da pista. Feito com um concreto poroso, que vai se desfazendo conforme as rodas do avião passam por ele, o piso consegue reter aeronaves que estejam a até 140 quilômetros por hora. Instalado em mais de vinte aeroportos no mundo, o sistema já evitou cinco tragédias.
Nos outros aeroportos brasileiros, os problemas de controle aéreo são mais graves. Há equipamentos obsoletos – alguns têm mais de quinze anos de uso, enquanto em países mais avançados os sistemas são renovados a cada cinco ou seis anos. Pelo menos nove salas de controle operam sem o auxílio de radar. Usam apenas o rádio para fazer a aproximação do avião com a pista de pouso. A precariedade traz conseqüências. Entre 2003 e 2007, foram registrados pelo menos 459 incidentes aéreos no país. A Aeronáutica alega que, desse total, é ínfimo o porcentual de casos que resultaram em risco crítico, ou seja, em que as aeronaves quase colidiram. Mas, na avaliação da Federação Internacional das Associações de Controladores de Tráfego Aéreo (Ifatca), as estatísticas brasileiras não traduzem o que de fato acontece. "No Brasil, há uma brutal subnotificação dos incidentes. Os dados oficiais devem corresponder a uns 5% do que realmente vem ocorrendo", disse a VEJA Christophe Gilgen, diretor da Ifatca. As falhas no sistema de controle são tão recorrentes que casos menos graves já nem são mais anotados. É como um cidadão que tem um relógio roubado e, por não acreditar na ação da polícia, não faz o registro na delegacia.
Luciano Amarante/Folha Imagem |
Parentes das vítimas do acidente da TAM, à esquerda, e os destroços do avião da Gol: sem solução |
Sebastião Moreira/AE |
VEJA consultou mais de 200 relatos de incidentes produzidos pela Aeronáutica desde o ano passado. Um deles refere-se a um episódio deste ano que por pouco não terminou em tragédia. No dia 18 de junho, um Boeing 737 da Gol quase se chocou com um avião da Força Aérea Brasileira quando se aproximava do aeroporto de Rio Branco, no Acre. As aeronaves passaram a apenas 60 metros uma da outra. Para que se tenha idéia de quanto isso é perigoso, basta imaginar as asas de um avião Boeing 737. Elas têm 35,8 metros de uma ponta a outra. A distância a que passaram foi pouco maior do que o espaço de um avião. O risco é equivalente ao de dois carros em altíssima velocidade que se cruzam raspando seus retrovisores.
Ao analisar esses registros, percebe-se uma série de falhas no sistema de proteção ao vôo no Brasil. Entre elas estão a ocorrência de alvos falsos (aviões inexistentes) e duplicações de imagem (dados de uma aeronave que aparecem repetidos em outro ponto da tela) nos equipamentos monitorados pelos controladores. Há casos de pane de telefonia – em que os aeroportos ficam sem comunicação com os centros de controle, os Cindactas – e falhas no funcionamento da comunicação via rádio. No Aeroporto de Cuiabá, por exemplo, a penúria é tamanha que os controladores têm de conviver até com ratos na sala de controle, conforme consta em relato feito no dia 21 de junho no livro de ocorrências: "Constatada a presença de rato no APP (setor de controle de aproximação de aeronaves). Alerto para a possibilidade de sua presença pôr em risco as conexões dos equipamentos". É nessas salas que trabalham os controladores de vôo, encarregados de orientar os pilotos na aproximação com os aeroportos – e quanto ao risco de colisões, como a que ocorreu entre o Legacy e o Boeing da Gol.
Há naquele episódio outro aspecto peculiar: houve dificuldades na comunicação em inglês entre os pilotos do Legacy e os controladores. Esse é um risco real para todos os pilotos estrangeiros. A falta de domínio do idioma pelos controladores ficou evidente em um teste realizado no ano passado. Apenas 9% alcançaram o índice de proficiência em inglês recomendado pela Organização Internacional de Aviação Civil (Oaci), o que significa saber manter uma conversação básica, além de ter domínio da fraseologia do controle aéreo. A Aeronáutica providenciou cursos para tentar corrigir o problema. Descobriu-se, então, mais um obstáculo. Muitos controladores acabaram desistindo por falta de tempo. Para complementarem a renda, fazem "bicos" em atividades como professor de cursinho, motorista de táxi e até pedreiro.
O mais impressionante é que essas deficiências poderiam ter sido corrigidas há muito tempo. Pelo menos desde 1996 as autoridades aeronáuticas têm conhecimento da necessidade de melhorias no sistema de proteção ao vôo no Brasil. O alerta consta em um relatório produzido na ocasião pelo Cindacta-1. O trabalho se baseou em um incidente real, ocorrido com o avião presidencial, em 6 de junho de 1996. O então presidente Fernando Henrique Cardoso estava a bordo. Quando sobrevoava Minas Gerais, um avião de passageiros vindo de Montes Claros (MG) aproximou-se além do limite aceitável pelas normas de segurança. O episódio foi uma espécie de marco zero do caos aéreo no Brasil. Com base nele, fez-se a simulação que, entre outras coisas, apontou "uma série de dificuldades de serviço nos órgãos de controle do sistema de tráfego aéreo". O relatório, ao qual VEJA teve acesso, trazia uma síntese dos problemas daquela época: radares inoperantes, falhas na comunicação em inglês entre pilotos e controladores, autorizações de vôo incompletas e panes nos sistemas de comunicação. O relatório também já recomendava melhorar o treinamento dos controladores, aprimorar a manutenção dos equipamentos e aperfeiçoar o processo de seleção e formação dos controladores. Nada mais atual.
Eugenio Goulart/AE |
Fotos Jose Patricio/AE, Manoel Marques, Antonio Galderio/Folha Imagem e Ivonaldo Alexandre/Gazeta do Povo |