Comecei a escrever esta coluna no trem que liga pontos bem definidos de dois canadás: Montreal, em Quebec, e Toronto, em Ontário. No suave sacolejo do pontualíssimo trem, era possível acessar a internet, falar ao celular, ver os produtivos campos do país, cruzar com outros trens, ou ler. Na primeira parte da viagem, me afundei no livro “The Unfinished Canadian”, que traz inevitáveis reflexões.
Os canadenses, explica o livro do jornalista Andrew Cohen, continuam imersos na interminável discussão sobre quem são eles. Serão uma cópia dos americanos pela inevitável força gravitacional que exerce a maior potência do mundo? Serão ingleses? Franceses? A crise de identidade — ou de falta de identidade — tem uma infinidade de dimensões.
Cohen é um dos vários escritores a se debruçar sobre esse assunto. Roy MacGregor é outro. No livro “Canadians”, ele pergunta, na primeira linha, “Quem somos nós?” E ele mesmo responde: “Não tenho idéia.” Um canadense de Ontário dirá que a crise de identidade é natural, fruto da extrema juventude do país, que completa, este ano, 140 anos de vida independente.
Um canadense de Quebec vai se definir como um québécois (carregando no sotaque, nada anglo-saxão, do som “quebecoá”).
Um morador de Toronto vai falar com orgulho do estonteante crescimento da cidade desde que todo o mercado financeiro e muitas empresas fizeram as malas e abandonaram Montreal no auge do movimento separatista de Quebec, na segunda metade dos anos 60. O orgulhoso morador de Montreal mostrará a parte velha da cidade cheia de sinais da volta por cima.
Imponentes prédios do século XVIII que eram sede dos bancos são hoje elegantes hotéis decorados com mobília de época, para dar aos turistas a sensação de retorno no tempo, ou têm decoração radicalmente pós-moderna e minimalista, para explorar as contradições.
O belo prédio da Bolsa de Valores é hoje o principal teatro da parte antiga da cidade, e a temporada deste ano, afirmam os cartazes afixados na frente do prédio, é mais uma vez dedicada a confirmar o que eles chamam de os “valores da identidade québécoise”.
Perguntei a um morador de Toronto, formado em História, quem era o maior herói do Canadá, e ele me olhou com o espanto.
— Não temos heróis. O Canadá não teve guerra civil, revolução, fatos dramáticos.
Na universidade, o que mais me aborrecia era ter que estudar a história do Canadá. Era chato.
O livro de Cohen ressalta insistentemente esta falta de heróis como fato incontestável.
Cita vários autores, canadenses ou não, que dão as mais variadas explicações.
“Não há heróis na terra bravia. Só os tolos correm riscos”, diz o escritor irlandês Brian Moore, explicando o fato pela geografia extensa e o clima extremo do Canadá.
Em Quebec, respira-se História, e ela não tem apenas 140 anos. O museu de Arqueologia e História, construído no local do primeiro prédio de Montreal, recuperou as fundações da velha edificação e, misturando efeitos high tech com aquelas sólidas bases de pedra, conta a história da cidade que tem mais de 350 anos, com heróis, fundadores e luta de resistência. A cidade foi invadida pelos ingleses, que venceram, mas jamais conseguiram eliminar a forte raiz francesa da terra que um dia se chamou Nova França.
Quando ponderei ao jovem professor de história de Toronto que o país teve, sim, momentos dramáticos, como a invasão americana em York (hoje Toronto) e sua vitória sobre os vizinhos, ele disse: — Ah, isso eram os ingleses, não nós! Em Montreal, um garçom me falou longamente sobre a cidade. Para ele, fatos passados e presentes se misturam contando uma história só. Ele não diria: “Isso foi na época dos franceses.” Ele se sente, de certa forma, um pouco francês.
Talvez essa diferença de atitude tenha explicação na estrutura de poder. Os angloamericanos venceram.
Para eles, não há necessidade de firmar uma identidade.
Eles são o que são e o que serão num país claramente em mutação. Podem continuar sendo engolidos pela proximidade do vizinho poderoso com o qual têm a maior fronteira do mundo, repetindo-os em tudo e se dissolvendo. Os franco-canadenses não querem se dissolver, precisam se diferenciar dos Estados Unidos: é sua única forma de sobrevivência.
O escritor austríaco Stephan Zweig, que também passou pelo Canadá no começo do século passado, advertiu que os franceses deveriam aceitar a assimilação com os ingleses. A família Trudeau nasceu da dupla face do país, mas Charles e Grace, pais de Pierre Elliot Trudeau, que viria a ser o mais inesquecível dos primeiros-ministros canadenses, exigiram dos filhos as duas línguas em casa. Até os bilhetes entre pais e filhos eram em inglês, como conta o biógrafo John English no seu recém-lançado “Citizen of the World”.
Hoje o Canadá ainda se apresenta como um país bilíngüe, mas parece mais ser um país no qual se falam duas línguas. Moradores de Toronto, de nível universitário, admitem falar apenas um francês para a sobrevivência.
Reclamam das aulas obrigatórias, dos métodos cansativos, da língua apresentada como uma coleção de regras.
Em Montreal, é mais fácil encontrar quem fale inglês fluente, mas eles preferem sempre a conversa em francês.
Em Quebec, celebram a diversidade cultural; foram formados não apenas pelos franceses, mas por imigrantes de várias nacionalidades.
Porém, essa diversidade se estabeleceu em bairros separados, e assim se cristalizou. Viva e estonteante é a diversidade cultural de Toronto, que eu conto amanhã.
Entrevista:O Estado inteligente
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