"Podem criticar o Chávez por qualquer outra coisa. Inventem uma coisa para criticar. Agora, por falta de democracia na Venezuela, não é." Lula pronunciou essas palavras depois da aprovação, pela Assembléia Nacional venezuelana, do texto de reforma constitucional que vai a referendo nesse domingo. O texto não se limita a estabelecer a possibilidade de reeleição ilimitada do chefe de Estado, mas reinventa o Estado venezuelano pela transformação do presidente na fonte exclusiva da lei. Os artigos 337, 338 e 339 permitem que o presidente declare estado de exceção, por tempo ilimitado, sem escrutínio da Corte Suprema, e com a revogação do direito à informação. Esses artigos contrariam a letra da Convenção da ONU sobre Direitos Civis e Políticos e a da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, da OEA. A federação se converte em obra do arbítrio presidencial. O artigo 156 permite ao presidente, à sua vontade, criar ou eliminar estados, municípios e territórios federais. Pelo artigo 164, retira-se dos estados o direito de organizar a divisão político-administrativa municipal. Adicionalmente, no artigo 11, concede-se ao presidente o direito irrestrito de criar "regiões estratégicas de defesa" e designar autoridades especiais para administrá-las. A vontade do povo deixa de ser definida pelo voto popular. O artigo 16 estabelece a comuna (cidade) como "unidade política primária", e o artigo 136 cria o "poder popular", que "não nasce de sufrágio ou eleição qualquer, mas da presença dos grupos humanos organizados como base da população", em conselhos comunais de trabalhadores, camponeses, estudantes, mulheres, jovens ou idosos. Tais conselhos ganham reconhecimento por decretos presidenciais de constituição de comunas. O poder judiciário é extirpado de sua independência. De acordo com os artigos 264 e 265, uma maioria simples da Assembléia Nacional nomeia e remove, a qualquer momento, os juízes da Corte Suprema. Os órgãos de "poder popular" participam da indicação de candidatos a juízes. O mesmo sistema, de acordo com o artigo 295, é aplicado ao Conselho Nacional Eleitoral, o que assegura à atual maioria legislativa o controle sobre as regras e a fiscalização das eleições. A política externa chavista é consagrada como preceito constitucional. Pelo artigo 153, a Venezuela deve unificar a América Latina numa Pátria Grande ou, nas palavras de Simón Bolívar, "uma Nação de repúblicas". As forças armadas são definidas como "antiimperialistas" e renomeadas, pelo artigo 328, como "Força Armada Bolivariana". Remove-se a interdição de participação dos militares em atividades políticas, conservando-se apenas a de figurarem como ativistas de partidos políticos. O título Duce, que significa "líder", foi usado pela primeira vez pelo rei Vittorio Emanuele III em 1915, em seguida pelo intelectual e mentor de Mussolini, Gabriele D"Annunzio, durante sua efêmera regência autoproclamada de Carnaro, em 1920, e depois pelo próprio Mussolini, a partir da instalação da ditadura, em 1925. A reforma constitucional venezuelana representa a entrega do título de Duce a Hugo Chávez, que, como Mussolini, fala num "novo socialismo". O dístico mussolinista, "tudo no Estado, coisa nenhuma contra o Estado, nada fora do Estado", condensa o sentido da nova Constituição chavista, que identifica o Estado à vontade do caudilho. Em campanha para o referendo, Chávez emprega o rótulo de "traidor" para se referir aos defensores do voto no "Não", inclusive os que sustentaram seu poder legítimo na hora do golpe de 2002. É que o Duce é a Pátria, e divergir do Duce equivale a trair a Pátria. Segundo Lula, "democracia é assim: a gente submete aquilo que acredita, o povo decide e a gente acata o resultado". Tragicamente, ao que parece, nosso presidente descreveria nesses termos a elevação de Napoleão Bonaparte a cônsul, a cônsul vitalício e a imperador, e a nomeação de Hitler como Führer, que é tradução literal de Duce. Nesses casos clássicos, como em tantos outros, a democracia se degradou em tirania no líquido de sucessivos referendos. Democracia não é um continente inexplorado. O conceito tem História, e seu sentido está impresso na experiência das sociedades, no texto das leis, no corpo dos tratados. O Protocolo de Ushuaia, firmado pelas nações do Mercosul, assim como por Chile e Bolívia, abre-se com o artigo que diz: "A plena vigência das instituições democráticas é condição essencial para o desenvolvimento dos processos de integração entre os Estados-partes." O governo Lula tem o direito de julgar que o tratado constituiu um equívoco na trajetória do Mercosul, e de propor a sua revogação à sociedade brasileira e aos demais signatários. Mas age contra o interesse nacional quando o ignora, defendendo a inclusão da Venezuela no Mercosul. O Congresso Nacional tem a obrigação de honrar a palavra do Brasil, fazendo cumprir o tratado, que é lei. Isso significa rejeitar, por hora, a pretensão venezuelana.
DEMÉTRIO MAGNOLI é sociólogo e doutor em geografia humana pela USP. E-mail: demetrio.magnoli@terra.com.br. |