reforço à doença
O prejuízo que pode causar o recurso
ao vocabulário médico em áreas que
não lhe são próprias
O senador Renan Calheiros disse na semana passada que é vítima de um processo "esquizofrênico". Não foi a primeira vez. Ele tem mostrado, ao longo desses meses todos em que figura como pivô num leque de escândalos, especial queda pelo adjetivo "esquizofrênico". Nem é o único: "esquizofrênico", em sentido figurado, é usado por muitas pessoas, em muitas situações, mesmo que nem sempre, como é o caso de Renan Calheiros, seja fácil perceber o que querem exatamente dizer com isso. Não importa. Entenda-se a palavra como se entender, o caso é que seu uso e abuso, em sentido metafórico, faz mal aos portadores da disfunção chamada "esquizofrenia", a seus familiares e aos profissionais de saúde que lutam contra os preconceitos que envolvem os transtornos mentais. Ao lançarem mão do termo para demonizar uma ação ou um fato político ou social, demonizam, de quebra, aqueles aos quais o termo se refere em sentido próprio.
"Esquizofrênico", muito usada quando se quer ofender ou xingar, é apenas uma das muitas palavras que saíram do vocabulário da medicina para ganhar circulação livre e desimpedida em outras áreas. Num livro famoso da década de 70, A Doença como Metáfora, a escritora americana Susan Sontag chamou atenção para o uso indevido da palavra "câncer". Citou exemplos então ainda frescos na memória, como a frase com que o assessor John Dean alertou o presidente Richard Nixon do que ocorria no governo, à época do escândalo de Watergate: "Temos um câncer que cresce muito próximo da Presidência". O que Dean queria dizer é que havia algo de moralmente podre a corroer o governo. O câncer propriamente dito, por conseguinte, teria a ver com algo moralmente podre.
Susan Sontag focava seu livro no câncer e na tuberculose. A tuberculose exerceu no século XIX – inclusive no reino das metáforas – papel semelhante ao do câncer no século XX. Na década de 80 veio a aids, e a autora escreveu outro livro, como adendo ao anterior. Se já no caso do câncer não era difícil pespegar algum componente "moral" à doença (corria, na época da publicação de A Doença como Metáfora, a crendice de que havia pessoas "psicologicamente" propensas ao câncer, como aquelas que reprimem os sentimentos), mais razão ainda havia para fazê-lo no caso da aids. Num caso como no outro, muito mais ainda no da aids do que no do câncer, ao sofrimento físico do paciente acrescentava-se a culpa. O uso das palavras "câncer", ou "canceroso", e "aids", ou "aidético", em terrenos que não lhes são próprios, vinha se somar à carga de preconceitos cercando essas doenças, potencializando seus efeitos.
Se isso é verdade com relação ao câncer e, mais ainda, à aids, mais verdade ainda é com relação aos transtornos mentais, marcados por estigmas que não contam com patrulhas tão aguerridas e com o mesmo acesso à mídia quanto as que lutam contra o estigma da aids. Imagine-se se Renan Calheiros tivesse dito que os processos contra ele são "aidéticos". Ele sabe que não pode dizer isso. Mas não lhe ocorre, nem a ele nem a muitos outros, que o mesmo cuidado merecia ser estendido à palavra "esquizofrênico". Ou à palavra "bipolar", nome de outra disfunção mental que começa a cair no gosto de quem costuma lançar mão do vocabulário médico para outros fins.
"Transtornos mentais já em si são algo com que é difícil lidar, tanto para os pacientes como para os familiares", diz o psiquiatra Marco Antonio Marcolin, pesquisador da Universidade de São Paulo. "Qualquer mensagem que se refira a eles em sentido negativo vem aumentar o estigma. Ao aumentar o estigma, cai a adesão dos pacientes ao tratamento, um dos maiores problemas nos tratamentos psiquiátricos, compromete-se a compreensão dos parentes, multiplicam-se os custos para o sistema de saúde e reduz-se a empregabilidade dos portadores." Marcolin é presidente de honra da Fênix, ONG com sede em São Paulo e atuação em cinco estados, voltada para a organização de grupos de auto-ajuda de portadores de transtornos psiquiátricos e seus familiares. Um dos objetivos centrais da Fênix é o combate ao estigma que cerca tais pacientes.
Na maravilha da literatura universal que é o conto A Terceira Margem do Rio, de Guimarães Rosa, um homem um dia se despede da família, embarca numa canoa e nunca mais volta, decidido a passar o resto da vida a subir e descer o rio, subir e descer. A família se despedaça de tristeza e de vergonha. Por que o pai fez isso? A mais forte hipótese era: "doideira". O filho que narra a história, abalado como ninguém com uma situação que sofre sem compreender, nos dá conta de uma transformação que se operou na família: "Na nossa casa, a palavra doido não se falava, nunca mais se falou, os anos todos, não se condenava ninguém de doido". Doido, para nós das cidades, é uma palavra inocente, até meio engraçada, como "aloprado". Não nos sertões de Guimarães Rosa. Aquela gente do conto sabia, a seu modo, o poder destrutivo de uma palavra dessas, quando usada fora de lugar.