Entrevista:O Estado inteligente

quarta-feira, novembro 21, 2007

Em torno do bem ilimitado

Roberto DaMatta


A Antropologia Social me ensinou a examinar fenômenos sociais pelo avesso.

Tome-se, por exemplo, um sistema no qual a herança se faz por linha materna, passando de mãe para filha, e todo sistema habitual de autoridade fica de ponta cabeça. Agora não é o pai quem detém a autoridade da casa, mas o tio materno. A chefia de uma aldeia segue do tio materno para o sobrinho, e o homem é ignorado na concepção dos filhos engendrados por espíritos que entram no ventre da mulher, como é o caso nas ilhas Trobriandesas. Do mesmo modo, falamos que toda dádiva se caracteriza pela espontaneidade e pela generosidade que faria do belo, como diziam os idealistas, ser algo que agrada sem interesse. Mas mesmo nos sistemas de troca de presentes emoldurados por reciprocidade, Marcel Mauss demonstrou uma ''''obrigação'''' de dar, receber e... retribuir. O código do favor trivializado no nosso sistema político mostra essa obrigatoriedade de devolver, expressiva de um lado oculto da dádiva. Não existe tal coisa como um almoço de graça e um pobre sempre desconfia - como diz o velho ditado - de muita esmola.

Nas minhas recorrentes tentativas de entender o Brasil como sociedade e cultura, experimentei virar pelo avesso o que examinava. Se você ler o meu livro Carnavais, Malandros e Heróis, verá que eu sugiro que o ''''carnaval'''' é o inverso de uma ''''parada militar'''' e que ambos são opostos a uma ''''procissão''''. Quer dizer: coloque de ponta cabeça um rito formal (onde todas as posições são fixas - uma festa de formatura ou a ''''posse'''' num cargo público) e você terá um ''''carnaval'''', como ocorre nos ''''comícios''''. Do mesmo modo, eu tento demonstrar que o ''''medalhão'''' é um ''''malandro'''' pomposo e oficial, aceito pela nossa hipocrisia hierárquica, ao passo que o ''''otário'''', o ''''bandido'''' e os ''''renunciantes do mundo'''' (gente como Antonio Conselheiro e Jânio Quadros) são - em escalas diversas -, seus opostos.

George Foster, o antropólogo americano que sugeriu a lógica do ''''bem limitado'''', não fez esse exercício. Não viu que as aldeias mexicanas eram englobadas por uma instituição maior, a elas opostas e contrárias: o Estado nacional mexicano. Sua idéia de um bem limitado descreve as comunidades, mas o que acontece quando se olha para a totalidade nacional? Quando se visita, por exemplo, uma cidade ou se é visitado por um representante do governo?

A inveja é um mecanismo de controle válido em certos campos. Daí o cuidado em exercer a ambição e a autonomia promotoras de ascensão social em comunidades que se pensam como fechadas, limitadas e pobres. A ascensão do filho pode esgotar as possibilidades do pai; a da mulher ''''tira'''' a do marido, etc... A ''''casa'''' opera com constrangimentos claros. De dentro do seu espaço, temos um mundo onde todos se ligam com todos. Mas o que ocorre no mundo da ''''rua'''', esse universo órfão de pai e teoricamente igualitário, desenhado por leis e administrado pela polícia e pelo ''''governo''''?

Nesse espaço, ocorre uma importante inversão. Se a casa tudo limita, na ''''rua'''' - entendida como área estruturada pela ''''política'''', pelo ''''governo'''' e pelo ''''Estado'''', onde operamos como indivíduos e ''''cidadãos'''' - tudo é permitido.

Penso que nossa estadolatria, estadomania e estadofilia, a idéia de que o ''''Estado'''' tem recursos infinitos, e que nele jaz as fontes de mudança e transformação social, é uma idealização colada à representação da ''''casa'''' e da sociedade como um bem limitado. Se, então, na família e na casa - como filho, irmão, cunhado e marido - eu não posso agir como um indivíduo autônomo; no governo e por meio do ''''Estado'''' eu me transformo. Agora, como vereador, senador ou governador, tudo posso. E se a realidade social não deixa, eu invento leis, mudo a moeda e redesenho instituições. Se não posso mudar as normas sagradas da ''''casa'''', imagino que, na ''''rua'''', tudo pode ser transformado. Temos, pois, de um lado, a ''''realidade terrível'''' da fome das criancinhas que limitam tudo na sociedade; e, do outro, as possibilidades de transformação a serem realizadas pelas dimensões do ''''Estado'''' que vemos como infinitas.

Entre esses dois modelos - o da ''''casa'''' com suas limitações; e o da ''''rua'''', com sua promessa de transformação e liberdade - jaz a concepção do ''''Estado'''', da ''''política'''' e do ''''poder'''' como instrumentos ilimitados (e exclusivos) de mudança social. Tem sido somente nestes tempos de profundas reformulações que começamos a imaginar o ''''Estado'''' menos como um grande transformador e mais como um instrumento de equilíbrio entre competidores, como um gerente de futuros públicos viáveis, ou como um administrador responsável de rotinas. Imaginado somente como um bem ilimitado, ele engendrava fantasias de onipotência que precisamos - ao menos - compreender e criticar. Nossa fonte de desigualdade estaria também nessa visão de uma sociedade limitada, pobre e invejosa (de ''''direita''''); e de um ''''Estado'''' poderoso e rico que pode tudo por ser dotado de recursos infinitos (de ''''esquerda''''). Como fazer com o ''''Estado'''' trabalhe para a sociedade continua, desde os tempos de Dom João Charuto, o nosso grande desafio.

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