Entrevista:O Estado inteligente

sábado, novembro 24, 2007

A Economia em Machado de Assis

Pecados do capital

Crônicas de Machado de Assis revelam
a barafunda econômica de sua época – e a
posição sinuosa do autor sobre o tema


Jerônimo Teixeira

Montagem sobre fotos de Marc Derrez, Luis Eduardo Tostes/Lumen
Na montagem, Machado de Assis com cédulas de seu tempo: investidor ingênuo, ele acreditou nas apólices da dívida brasileira

VEJA TAMBÉM
Exclusivo on-line
Trecho do livro
Podcast Radar on-line: Gustavo Franco fala sobre seu livro A economia em Machado de Assis

"Finanças das finanças, tudo são finanças", diz Machado de Assis (1839-1908), em uma crônica de 1892. A frase tem aquela qualidade esquiva típica do autor. Parece exaltar a importância dos temas financeiros, mas também carrega uma insinuação de censura moral. "Vaidade das vaidades, tudo são vaidades", diz o Eclesiastesa paráfrase bíblica de Machado trocou o pecado capital pelos pecados do capital. Essa ironia no trato de bolhas financeiras e desvalorizações monetárias dá o tom de A Economia em Machado de Assis (Jorge Zahar; 272 páginas; 44 reais), coletânea organizada pelo economista Gustavo Franco, ex-presidente do Banco Central. O admirador de Machado terá o prazer de observar a história econômica da virada do Império para a República através do pincenê do autor de Dom Casmurro.

Franco selecionou 39 crônicas (duas delas em forma de versos), que vão de 1883 a 1900. Foi um período economicamente conturbado. Imperava o caos monetário, com vários bancos autorizados a emitir cédulas ou títulos da dívida pública. Entre o fim do Império e o início da República, houve uma explosão de euforia especulativa na Bolsa do Rio de Janeiro, o chamado Encilhamento. Não passou de uma ilusória "bolha", que estourou em 1891, quando Rui Barbosa era ministro da Fazenda. Machado de Assis, aliás, faria um retrato sarcástico desses desvarios financeiros na figura do especulador Nóbrega, de Esaú e Jacó, romance de 1904. Em uma crônica contemporânea à crise, ele trataria o problema com certo desdém: o Encilhamento afigura-se apenas como uma rua obstruída pela multidão agitada que se aglomera em frente à bolsa.

O subtítulo da coletânea é muito apropriado: "O olhar oblíquo do acionista". Machado demonstra um curioso interesse pelas assembléias de acionistas – e critica o desinteresse destes em participar da administração de seus fundos. Várias crônicas repetem a máxima de que o acionista "se importa mais com os dividendos do que com os divisores" (administradores). Nas esclarecedoras introduções e notas às crônicas, Gustavo Franco lembra que o vilão machadiano não é exatamente o acionista que se conhece hoje. A partir de uma sugestão do jurista e historiador Raymundo Faoro, Franco lembra que o termo mais apropriado talvez fosse não "acionista", mas "rentista" – o proprietário ocioso que vive de rendas, como o protagonista de Memórias Póstumas de Brás Cubas. O investimento em ações ao tempo de Machado obedecia a uma lógica estranha: graças à oferta de crédito (e ao mais irresponsável dos fiadores: o governo), garantiam-se dividendos sobre lucros fictícios. Era um investimento sem risco. "Embora aparentado, este não é o capitalismo de nossos dias", observa o organizador da coletânea.

Gustavo Franco já organizara antes outra coletânea dedicada ao pensamento econômico de um gênio literário. Em A Economia em Pessoa, o poeta português Fernando Pessoa defende causas surpreendentemente atuais, como a liberdade de comércio e a limitação às intervenções estatais. A crítica de Machado ao "acionista" é mais difícil de definir. Seria ele um liberal "moderno" a atacar a irracionalidade de um sistema que era capitalista só pela metade? Ou um empedernido conservador, avesso às inovações do capital financeiro? Machado foge às posições claras. Prefere a postura olímpica de quem se aborrece com temas comezinhos como o déficit público. Essa atitude sobranceira talvez tenha cobrado seu preço: o testamento do escritor, reproduzido no capítulo final de A Economia em Machado de Assis, revela que ele aplicou grande parte de seu patrimônio em apólices de um empréstimo internacional tomado pelo Brasil em 1895. Escritor malicioso, investidor ingênuo: o governo nunca resgataria o valor real dessas apólices.

Arquivo do blog