Gaudêncio Torquato
O diagnóstico é irreparável. A intenção do tucanato de afiar o bico com vista ao pleito presidencial de 2010, com passagem pela floresta municipal de 2008, é compreensível, principalmente ante o estado de catatonia em que vive o sistema partidário. Ocorre que o PSDB perdeu o gás que tinha por ocasião do seu nascimento em 1988, ano do rebuliço constitucional, quando o País iniciava um ciclo de oxigenação política. Sua atual expressão, rica de platitudes, se iguala à de outras siglas, sendo apenas gaita de sopro para animação de uma militância sem entusiasmo e cada vez mais rala. Os tucanos não souberam correr no vácuo aberto pela pasteurização partidária. Detinham uma das identidades mais homogêneas entre os entes partidários, quando foi fundado o partido; os melhores quadros, a partir de Franco Montoro, Mário Covas e Fernando Henrique; e, ainda, a proposta mais consentânea com a modernidade institucional, eis que não se originou no ventre sindical nem em lobbies corporativos ou assembleísmo classista. Nascia de uma costela peemedebista, pelo engajamento de um grupo a um ideário renovador e em repulsa aos métodos da velha política. Mas caiu na vala comum onde os partidos brasileiros, desde os tempos do Império e da República Velha, costumam aprofundar raízes e contribuir para a manutenção de velhas estruturas.
O PSDB sempre foi um partido de quadros, expressão atribuída por Maurice Duverger a legendas que não fazem apelo direto às massas, não desenvolvem um modelo de adesão formal e são dirigidos por políticos conhecidos. Essa tipologia foi, até 1914, essencial para a consolidação da democracia liberal na Europa. Mas não resistiu à emergência dos partidos de massa, com os quais passou a dividir o poder. No caso brasileiro, o partido da social-democracia nunca se empenhou em chegar às margens sociais, limitando-se a defender um ideário próximo aos núcleos concentrados no meio da pirâmide social. Seu erro, desde o início, foi o de apostar que, sem participantes massivos, num país de cultura política subdesenvolvida como o nosso, conseguiria viver na crista do poder. O desaparecimento de tucanos referenciais, o desgaste do segundo mandato de FHC, a sucessão de crises políticas e a miscigenação partidária abriram enorme fosso entre a esfera social e o território político. O vazio foi estrategicamente ocupado por Luiz Inácio, ícone da dinâmica social. Que luta para comprimir o espaço da oposição. Neste segundo mandato, o presidente lubrifica motores, abraça as massas e coopta partidos, usando, na mão esquerda, a bengala populista e, na direita, o aríete estatal para derrubar bastiões da resistência.
E o que diz o PSDB? Faz a crítica cosmética no geral, mas negocia com o Executivo no particular. Essa é a impressão que transmite. Falta-lhe a virtude da coerência. E vontade de fazer oposição sem transigir. Os tucanos talvez nunca tenham desenvolvido o faro oposicionista. Vagam na escuridão. Qual é a proposta mais objetiva de seu programa? A defesa do voto distrital, ferramenta que, vale lembrar, freqüenta o cardápio reformista há bastante tempo? Nos últimos tempos, o partido praticamente se limitou a repetir que o governo Lula copiou sua política macroeconômica e seu programa distributivista. Ora, essa queixa não leva a nada. Apenas sugere que, em nosso país, a disputa interpartidária é um jogo pela alternância do poder, sem grandes diferenças programáticas. Tem sido assim desde o Império, quando os clãs feudais se engalfinhavam. Uma ou outra sigla poderia ser mais identificada com o interior rural ou o centro urbano, como o PSD e a UDN. Quase todos os partidos políticos, porém, sempre viveram à sombra do Estado, o que os torna dependentes da máquina estatal. Veja-se o atual PT. Partidarizou o Estado. Não há mais rivalidade ideológica, apenas luta para conquista do poder a qualquer preço.
A crise do tucanato abarca, ainda, um excessivo centralismo, sob o comando de uma cúpula reduzida. Há cinco a seis figuras de proa que ditam as regras. As instâncias estaduais e municipais são corpos inermes. Na escala dos agravos, a grande floresta tucana se concentra em São Paulo e Minas Gerais, indicando a existência de aves de bico longo e grosso que amedrontam tucaninhos de plagas marginais. O fato é que a cultura política do País adquiriu nuances. As coisas da política são consideradas abjetas. Partidos e políticos são considerados "farinha do mesmo saco". O pragmatismo alimenta o sistema decisório da população. Palavra de ordem dada por sigla partidária não passa de "mais do mesmo". Sob esse esgarçado tecido político-institucional, o novo programa do PSDB se assemelha a um presente velho com embalagem fina. É burocrático, mais um diagnóstico e menos proposição. Falta-lhe representatividade social e territorial. O partido insiste em ser uma casta. E que tem um castelo como morada.