"É a tolerância com a barbárie das prisões
que levou a menina de 15 anos a passar
24 dias no inferno numa cadeia do Pará"
Em todo país civilizado, a notícia causou escândalo: uma jovem saudita de 18 anos foi estuprada por sete homens há mais de um ano – e, agora, saiu a sentença do caso. A jovem, moradora da cidade de Qatif, interior da Arábia Saudita, foi condenada a seis meses de prisão e 200 chibatadas. Sim, a vítima foi condenada à cadeia e à surra. Considerou-se que, ao ir encontrar-se com um homem que não era seu parente num local público, violando o código de conduta da teocracia islâmica, a jovem facilitou o estupro. É a barbárie, da qual nos orgulhamos de estar tão distantes. Será?
No dia 21 de outubro, conforme o Brasil tomou conhecimento na semana passada, uma jovem de 15 anos foi presa em flagrante sob suspeita de furtar um celular em Abaetetuba, nas franjas de Belém. Foi enviada para o xadrez da cidade. Passou 24 dias numa cela com outros trinta presos, todos homens e adultos. Ela contou ter sido sistematicamente abusada sexualmente em troca de comida. O que os policiais disseram? Num primeiro momento, alegaram que a menina tinha 20 anos, como se isso fosse o ponto nevrálgico da questão. Depois, o próprio pai da garota contou ter sido ameaçado pelos policiais para forjar uma certidão de nascimento mostrando que ela era mais velha.
Qual o caso mais bárbaro? O da Arábia Saudita dos monarcas muçulmanos ou o do Pará de nossa saltitante governadora Ana Júlia Carepa? Há um dado que precisa ser levado em conta: na Arábia Saudita, as coisas transcorreram de modo absurdo, mas um absurdo em conformidade com o absurdo aparato legal. No Pará, tudo acontece como se fosse, e talvez seja mesmo, uma terra sem lei. A Justiça paraense sabia que a menina de 15 anos estava detida numa cela com homens. A juíza, ciente do caso, ouviu a menina e chegou a devolvê-la para o inferno. Um escândalo, mas não uma novidade. Em poucos dias, a imprensa descobriu outros casos de mulheres presas em celas do interior do Pará na companhia de homens. Em todos os casos, deu-se o óbvio: estupros seguidos.
O caso repulsivo do Pará, além do evidente desrespeito à mulher e, no caso, à adolescente, repisa a indiferença com que o país recebe as denúncias das condições desumanas das prisões. Há uma certa cultura subintelectual segundo a qual os presos devem ser tratados da forma mais brutal possível porque, como criminosos, sobretudo quando homicidas, não devem ter direito a tratamento humano. É a velha gritaria daqueles que acham que direitos humanos é proteção de bandido. Na base dessa estupidez sobrevive a idéia medieval de que conceitos morais são relativos – ora devem ser observados, ora devem ser ignorados.
É por isso que as prisões brasileiras são uma lixeira que escandaliza o mundo – mas, em geral, não escandaliza os brasileiros. Um relatório da Caravana da Comissão de Direitos Humanos da Câmara, destacado no livro A Prisão, de Luís Francisco Carvalho Filho, informa que, no Ceará, presos se alimentavam com as mãos. A comida, estragada, era servida em sacos plásticos. Mas tudo bem. Em Pernambuco, os presos defecavam em sacos plásticos. Mas tudo bem. No Paraná, um preso passou sete anos em cela de isolamento, sem visita nem banho de sol. Mas tudo bem. É por causa dessa tolerância com a barbárie que a menina de 15 anos passou 24 dias no inferno no Pará.