Artigo - Roberto DaMatta |
O Globo |
14/11/2007 |
O antropólogo George Foster usou a idéia do bem limitado para compreender uma comunidade fundada em redes hierárquicas, onde qualquer movimento individualizador era visto como uma ameaça ao equilíbrio social e, assim, sujeito a inveja, mau olhado e feitiçaria. Nela, o mundo era lido pela experiência da escassez e da pobreza, de modo que se uma pessoa tinha sucesso ou se destacava por algum evento especial (paternidade, casamento, ganho numa loteria ou perda de um parente), ela era alvo de inveja. A inveja e o horror ao sucesso inibiam a individualização positiva, a mobilidade social e a competição. A tese do bem limitado me fez ver que, nas sociedades onde o individualismo existe, mas é tolhido e considerado como um sinônimo de egoísmo, o sistema tende a ser percebido como mais fechado e menor do que nos casos onde as hierarquias perpetradas por redes sociais imperativas são substituídas pelo individualismo e pela igualdade como uma ideologia dominante. A noção de um beneficio limitado, de uma sociedade onde muitos são chamados e poucos escolhidos, fotografa um sistema onde destacar-se é um ato de desabusado egoísmo, pois nestes sistemas a "cidadania" seria dada naquele conhecido adágio brasileiro que consagra o "cada qual no seu lugar" que realmente sinaliza o perigo de ultrapassá-lo. Colocar o chapéu onde se pode apanhar é o outro lado da inveja de quem sai de uma pauta aristocrática aberta às novidades de fora e ranzinza com as razões locais. Quando se usa o "está se achando" como um sinal negativo de uma apresentação na qual a auto-importância é destacada, revela-se como os controles para permanecer no seu lugar são levados a sério mesmo neste Brasil de Bovespa bombando e governado por um Lula cada vez mais neoliberal e disposto a canibalizar a tal "herança maldita"; de resto, um trabalho político magistral simplesmente abandonado pelos tucanos. A vantagem dos sistemas onde todos se ligam com todos é que a lealdade e a proteção anestesiam as enormes desigualdades sociais. Neles, todos se sentem mesmo culpados, e poucos têm orgulho coletivo, pois o mais bem-sucedido, rico, honesto ou bonito sempre tem como contrapeso o mais pobre, o mais canalha e o mais fracassado. Daí a leitura perpetuamente negativa de si mesmo. Aqui, o famoso narcisismo às avessas de Nelson Rodrigues não é uma figura de linguagem, mas um fato da vida. Em tais grupos, não há espaços individualizados ou abertos. Não existe fronteira. Tudo tem dono, patrão e lugar. O pessimismo é dominante, porque os relacionamentos são marcados por vergonha, pena pelas lealdades decorrentes da troca de obséquios que cada vez mais prendem uma pessoa à outra. Os desgarrados são lidos como inovadores, gênios ou miseráveis. Como o maior pecado é ter opinião e ser autônomo, há uma enorme dificuldade de separar pessoas de regras, cargos ou preconceitos morais. Se as pessoas são donas de pessoas, elas são ainda mais donas de cargos e normas que deveriam valer para todos. Daí a criminalização do sucesso. E a vigência da crença segundo a qual o êxito de um profissional em qualquer área é um sinal de que o bem-sucedido acaba recebendo muito mais do que merece, de modo que essa "mais-valia" simbólica teria que ser punida, pois seria a parte - como expressou Marx com nitidez - que ele estaria roubando de alguma pessoa do sistema. Nestas sociedades, é complicado convencer um artista de que o sucesso do colega significa uma abertura do sistema para a obra de todos os artistas, pois ele sempre vê o êxito do outro como uma agressão ou como um sinal de que jamais terá vez neste mundo. O sucesso universal que todos um dia vão obter, ainda que por 15 minutos, só poderia ser a idéia de um Andy Warhol. Um artista, é claro; mas, antes de tudo, um americano crente de que basta esperar na fila que, um dia, você vai ter tudo o que sonhou. O crime do êxito está ligado a esse desamarrar do sistema. Mas, pior que isso, é descobrir que ele sorri para as pessoas erradas, para quem não faz parte da "turma" correta. O "estar por dentro ou por fora" fala desse pertencer generalizado, ainda que humilde, a alguma rede de relações. Quem assume uma individualidade contundente corre o risco de ficar por fora. Foi o caso de Lima Barreto e - quem sabe? -, de Pedro II. Entende-se agora a enorme simpatia por qualquer tipo de coletivismo, desde que o bem a ser dividido não seja o nosso, mas o "bem comum", que não pertence a ninguém num sistema constituído de pessoas concretas, jamais de cidadãos universais. Outro dado marcante é a existência de revolucionários oficiais, do mesmo modo que pululam canalhas institucionais. Os transformadores acusam o sistema sem piedade, mas com malícia; já os canalhas são os que jamais obedecem às leis, mostrando que, quando se "chega lá", o céu, e não a cadeia, é o limite. |
Entrevista:O Estado inteligente
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quarta-feira, novembro 14, 2007
A imagem do bem limitado e o mundo brasileiro
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