por Augusto de Franco
19.10, 17h51
"A república dos pelegos não vai querer voltar a ganhar R$ 800 assim tão facilmente", disse Cesar Maia, segundo a coluna da Dora Kramer hoje no Estadão. É verdade. Essa "classe" (que Reinaldo chama de "burguesia do capital alheio") fará tudo - por vias legais ou ilegais - para não sair dos postos conquistados, as tais "trincheiras" da "guerra de posição" gramsciana; Gramsci, como sabemos, não descartava os meios violentos, senão que compreendia que, nas sociedades complexas do ocidente, seria inútil tentar tomar pela força o poder de Estado sem antes estabelecer a legitimidade desse movimento por meio da conquista da hegemonia de uma certa visão. A idéia de guerra de posição, o mais importante conceito estratégico de Gramsci (identificado ao de hegemonia: "em política, a guerra de posição é a hegemonia" – dizia ele, literalmente: esta é uma citação dos "Caderni") foi tomado de empréstimo à ciência militar (sobretudo no que se refere à oposição entre guerra de movimento e guerra de posição, fruto da experiência da guerra de 1914-1918).
Por trás dos interesses objetivos da "classe" dos burocratas sindicais e dos apparatchiki (como se escreve o termo no plural) estão os intelectuais "orgânicos" que infestam os departamentos de sociologia e política das instituições de ensino superior, ensinando-nos que esse é o caminho para a transformação social. O termo russo apparatchik designava um funcionário profissional, full time do partido ou da administração soviética, freqüentemente aboletado em altos cargos do Estado.
Bom, mas o fato é que, como argumenta Dora antes da dar a palavra ao prefeito do Rio, "os políticos oposicionistas mais preocupados com a sucessão presidencial de 2010 - vale dizer, quase todos - divergem quanto ao caminho a ser adotado, mas todos concordam que algum plano a nação petista terá para continuar no poder depois de concluído o segundo mandato de Luiz Inácio da Silva. Aquele contingente de milhares que ascendeu social e politicamente com a eleição do presidente Lula, reza o raciocínio unânime, não vai se conformar com facilidade em voltar à planície que, em muitos casos, significa o retorno ao vale dos despossuídos. E aí, já sem o charme do diferencial "do bem" relativamente aos outros partidos. Um baque de boa monta para quem teve acesso a mares dantes nunca navegados e não dispõe de preparo, tradição e formação profissionais para, na eventualidade de derrota eleitoral, preservar o padrão adquirido nos oito anos de poder".
Essa não é uma especulação ociosa. É um problema seriíssimo colocado para a democracia brasileira. Eles não vão abandonar facilmente o poder por quatro motivos:
a) em primeiro lugar, porque sabem que não terão outra chance como essa de avançar na tal "conquista da hegemonia" se abandonarem as importantes posições já conquistadas no aparelho de Estado e adjacências;
b) em segundo lugar porque, fora do poder, ficarão vulneráveis à investigação dos numerosos crimes que cometeram desde 2003 (e, a rigor, até antes, passando pela gestão fraudulenta de prefeituras - incluindo Santo André, onde o caso é mais grave - e de governos estaduais);
c) em terceiro lugar, porque Lula não quer mesmo sair do poder (ele é pessoalmente fixado, obcecado por isso); e,
d) em quarto lugar, então, pelos motivos já diagnosticados por Dora Kramer: os interesses materiais, objetivos, da nova "classe".
De todo modo, pode-se dizer que o problema não é apenas que eles não queiram sair do poder (isso eles não querem mesmo), mas, principalmente, que eles não podem sair do poder. É uma questão de sobrevivência, pessoal e grupal, econômica e, sobretudo, política. Só aceitariam tal hipótese com base em um acordo amplo, que, por um lado, lhes assegurasse uma espécie de anistia prévia, uma condição de inimputabilidade (uma promessa de que seus malfeitos não seriam investigados pelo novo governo) e, por outro lado, como não podem confiar na palavra dos inimigos, lhes garantisse a manutenção de alguns "territórios" conquistados em fundos de pensão, empresas estatais, aparatos para-estatais, centrais e sindicatos, movimentos sociais e ONGs aparelhadas e abastecidas de recursos públicos suficientes para sobreviver por uns quatro anos, até a próxima eleição presidencial. Ou seja, o vencedor (da oposição) teria que negociar com o vencido (da situação) a manutenção de parte substantiva do Estado paralelo que foi construído no Brasil.
Mas para que esse acordo pudesse valer de fato seria necessário que Lula não fosse derrotado em 2010 e que continuasse como um grande líder de massas, com capacidade de convocar essas massas caso o dispositivo fosse ameaçado. Em outras palavras, o vencedor do pleito de 2010 deveria governar até 2014 monitorado de perto pelos agentes do lulopetismo e sempre sob ameaça: caso contrariasse o grande líder, teria seu governo inviabilizado por um PT fora do governo mas não totalmente fora do poder.
É difícil que um oposicionista aceite tais condições, a menos que seja um tucano. Portanto, a chave para a continuidade do processo de perversão da política e de degeneração das instituições continua, por incrível que pareça, nas mãos daquela mesma força política que salvou Lula do naufrágio em 2005 e, objetivamente, concorreu para sua reeleição em 2006.
Lula sabe que política efetiva é aquela que se faz com o adversário (para mudar o comportamento do adversário), não com o aliado. Lula sabe como ninguém manipular as deficiências "genéticas" tucanas para induzir comportamentos que lhe são favoráveis. É por isso que a linha central da atuação política de Lula é - sempre foi, pelo menos desde 2003 - com o PSDB. E é por isso que esse partido e não o PT é o grande responsável pelos retrocessos políticos que estamos vivendo no Brasil.
Ocorre que o lulopetimo usa o tucanato, dele fazendo gato e sapato, mas não confia no objeto da sua manipulação. Por isso, embora o assunto não esteja ainda resolvido no Estado-Maior do governo-partido no poder, são muito fortes as posições que prefeririam uma alternativa mais segura. As alternativas, entretanto, não são muitas:
1) eleger um petista orgânico em 2010 (tipo Wagner, Pimentel ou essa criatura oca que foi inventada para substituir Dirceu na Casa Civil, cujo gestual afetado e a encenação de eficiência burocrática lembram os de uma Zélia Cardoso de Mello da esquerda). Essa seria a melhor alternativa, mas as chances de sucesso são pequenas pois todos os postulantes são fracos e desconhecidos e teriam que ser construídos;
2) eleger um aliado que faça as vontades do petismo e fique segurando a vaga para a volta triunfal de Lula em 2014. Seria uma alternativa aceitável, se existisse um nome confiável na base aliada que tivesse voto. Lula especula com Ciro, mas nem o próprio Ciro sabe se é para "queimá-lo" (matando no nascedouro uma candidatura independente) ou para valer. Ademais, para o PT, é uma alternativa arriscada, pois trata-se, como o Brasil todo já viu, de um personagem instável, um tipo mercurial e que, ainda por cima, tem idéias próprias (e ruins) e dá a impressão de acreditar nelas;
3) alterar a Constituição para conquistar um terceiro mandato para Lula (o que só encontraria respaldo na opinião pública diante de uma grave comoção social e "produzir" tal comoção é uma operação muito arriscada, pois o efeito de tais urdiduras pode ser – e costuma ser – o inverso do pretendido);
4) convocar uma Constituinte exclusiva para fazer uma reforma política e introduzir modificações que alterem de tal modo as regras do jogo que justifiquem uma prorrogação do mandato de Lula por mais um ou dois anos (segundo alguns, essa é a melhor alternativa, que não soluciona o problema, por certo, mas ganha tempo enquanto não se encontra a solução ótima); e,
5) tentar negociar com a oposição (sobretudo com os tucanos) uma espécie de transição-interregno (com o fim da reeleição) para Lula poder voltar em 2015 (mantendo parte substantiva do aparato construído e a liderança de Lula incólume). Essa é a alternativa que já foi comentada acima.
Lula e o PT trabalham com as cinco alternativas pois não têm condições, agora, de optar por uma delas. Em contrapartida, eles sabem muito bem qual é a alternativa que não podem admitir: concorrer de modo limpo, sem falsificar ou manipular o processo eleitoral, aceitando democraticamente a derrota com todas as suas conseqüências.
Entrevista:O Estado inteligente
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