A América Latina é uma região onde a democracia se encontra fragilizada, embora a maioria das pessoas a considere a melhor forma de governo. Essa preferência não está associada, no entanto, a um apoio claro aos direitos individuais, e vem acompanhada de uma grande desconfiança em relação às instituições políticas e governamentais. Apesar de tudo, os latino-americanos são felizes, uma felicidade que não está relacionada a condições reais de bem estar, mas a experiências passadas e, sobretudo, a expectativas sobre o futuro. Esse pode ser o resumo de uma ampla pesquisa sobre coesão social na América Latina, a EcosociAL, que integra o projeto “Bases para uma Agenda de Coesão Social em Democracia na América Latina”, financiado com recursos da União Européia.
A pesquisa foi realizada pelo Instituto Fernando Henrique Cardoso, em conjunto com a Universidade Católica do Chile e a Corporación de Estudios para Latinoamérica, também daquele país, com amostra de dez mil pessoas, abrangendo sete países da América Latina: Argentina, Guatemala, Brasil, Chile, México, Colômbia e Peru. No Brasil, fizeram parte da amostra as cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador e Porto Alegre.
Para o sociólogo Simon Schwartzman, presidente do Instituto de Estudo do Trabalho e Sociedade (IETS), que atuou no projeto, a lição da pesquisa é clara: “Existe um grande desafio para os países latino-americanos: dar maior substância aos seus regimes democráticos. E isso passa por aumentar a credibilidade de suas instituições, reduzir as incertezas e a insegurança nas grandes cidades, oferecer mais condições e oportunidades de trabalho e fazer da educação um meio efetivo de qualificação das pessoas e mobilidade social”.
A pesquisa detectou que os países mais felizes são a Guatemala, onde paradoxalmente os índices de condição de vida são piores, e o Brasil. O país mais infeliz é o Peru, “talvez pela experiência recente de crises políticas e falta de perspectivas”.
Segundo Schwartzman, é possível especular, de muitas maneiras, sobre as causas dessa felicidade, “mas não há dúvida de que, combinada com as grandes expectativas de mobilidade, ela pode estar dando sustentação à frágil democracia e à débil coesão social latino-americana. É importante que as oportunidades reais de vida não continuem tão distanciadas, por muito tempo, das aspirações”.
Segundo a pesquisa, quase metade dos entrevistados acredita que se justifica fazer uso da força para conquistar seus direitos. A pesquisa mostra que a grande maioria dos latinoamericanos confia pouco ou nada nas instituições políticas de seus países, sendo que a maior desconfiança é em relação aos partidos políticos.
Em geral, existe menos desconfiança em relação ao governo nacional do que em relação às demais instituições, falta de confiança que influencia a preferência por governos fortes, embora a maioria dos que não confiem nas instituições continue preferindo a democracia. A grande maioria, 61,3% dos entrevistados em todos os países, não sente afinidade ou simpatia pelos respectivos governos.
O distanciamento maior é na Guatemala, com 73,5% das pessoas sem nenhuma afinidade ou simpatia, e o menor é na Argentina, com 50,9%, seguida de perto por Brasil e Colômbia.
Chile e Colômbia são os países politicamente mais polarizados, com poucas pessoas indiferentes em relação ao governo, enquanto e o Brasil é o país com maior percentagem de pessoas indiferentes: 21,6%.
Se a afinidade com os governos é baixa, a afinidade com os partidos e coalizões políticas no poder é ainda menor: somente 11% em toda a América Latina. A pesquisa mostra que ela é um pouco maior no Chile e no México, e extremamente baixa na Argentina, Brasil e Peru.
Na análise de Simon Schwartzman, parte da desconfiança em relação às instituições e autoridades “pode estar associada à má qualidade dos serviços públicos que as pessoas recebem”.
Essa descrença e desconfiança se explicam, em grande parte, pela situação de insegurança e medo em que vivem as pessoas na região. Quase 80% se dizem inseguros ao andar noite no centro das cidades.
Mais de 50% se sentem inseguros dentro da própria casa.
Apesar de tudo, as pessoas acreditam que o futuro será melhor para todos e vêem na educação dos filhos o principal caminho para isso.
O sociólogo Simon Schwartzman ressalta que pesquisa mostra principalmente “uma situação em que a população desiste da esfera pública — dos governantes, das instituições, da sociedade como um todo — e se refugia no mundo da família, do bairro e dos amigos. A pesquisa não identifica, nem no Brasil nem em outros países, com as exceções do Chile e da Guatemala, situações de polarização e conflito, mas também não identifica os elementos de coesão social e confiança na sociedade que existem nas sociedades mais desenvolvidas e dinâmicas, como as da Europa e Extremo Oriente”.
Apesar de existirem diferenças importantes em relação esses valores e percepções, o que mais chama a atenção para Schwartzman é que eles “são bastante semelhantes entre países e classes sociais”.
A Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) já havia detectado esse ambiente na região em um livro sobre coesão social na América Latina, com a visão de vários autores que se apresentaram em seminário realizado no Panamá. A preocupação crescente com a coesão social recomenda que as políticas públicas atuem “sobre os obstáculos que impedem o avanço de uma cidadania efetiva”, com os altos índices de pobreza e a persistente concentração de renda.
“Diferenças raciais, de gênero, étnicas e culturais recriam hierarquias e discriminações que se expressam em desigualdades e exclusão de oportunidades econômicas, diz o estudo da Cepal. (Continua amanhã)
Entrevista:O Estado inteligente
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