artigo - José Nêumanne |
O Estado de S. Paulo |
17/10/2007 |
Pode até ser tentadora, mas na certa também enganosa, a impressão de que o estado de decomposição do Senado desta República se deva exclusivamente ao processo de avacalhação a que a instituição foi submetida por conta do escândalo protagonizado pelo senador Renan Calheiros (PMDB-AL), que se licenciou da presidência e dificilmente a reassumirá depois do 45º dia, o último da licença pedida. Se também vier a perder o mandato, provavelmente ele não será vítima de uma injustiça atroz. Mas, ainda assim, não será justo considerar o episódio diferente de tantos outros que registraram a erosão da imagem do Senado, muito antes do que ora se passa. O que distingue o escândalo atual de outro, nada remoto, protagonizado por dois ex-ocupantes do mesmo lugar - Jader Barbalho, também do PMDB, e Antônio Carlos Magalhães, do DEM, ex-PFL - é o engano fatal de Renan de se haver considerado intocável, acima do bem, do mal e das vicissitudes da vida real. Não lhe faltaram força nem cúmplices, que tivessem sobrado aos antecedentes citados, mas lhe faltou, sobretudo, a noção do perigo. Sua imprudência, resultante de uma ousadia excessiva, é subproduto não tanto de teimosia ou de temeridade, mas mais do salvo-conduto que ele imaginava ter recebido, quer pelo comportamento similar da maioria de seus pares e juízes, quer pela confiança na solidariedade da chefia do Executivo, à qual se habituou a render vassalagem, seja quem for seu ocupante. A cumplicidade dos iguais se provou efêmera ao ficar evidente: insustentável para ele, insuportável para os outros. Os pouco nobres serviços que prestou ao poder maior - caso da frustrada tentativa de evitar que Pedro Simon (PMDB-RS) e Jarbas Vasconcelos (PMDB-PE) votassem contra a CPMF na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado - não lhe bastaram. Ele não foi o primeiro nem será o último a fazer o papel de faxineiro pelo avesso: produzir a sujeira e, depois, escondê-la. Como o alagoano, o paraense e o baiano se deixaram levar pela ilusão do poder absoluto, natural em quem se isola no alto da torre e perde o contato com o chão. Só que, mesmo tendo ultrapassado as fronteiras da decência e da prudência, Jader e ACM não queimaram as naves, qual Cortés, mas mantiveram o último laivo de lucidez e, aproveitando-se das brechas institucionais que garantem impunidade aos mandatários, renunciaram ao mandato, pulando do barco, para voltarem, apagado o fogo. Renan não repetiu esse recuo estratégico por ter confundido com covardia o que era só cálculo. Iludido pela pompa vazia de seu cargo, não levou em conta os próprios limites nem os reais interesses de quem o segurava no topo da escada. Aí, ficou no ar e perdeu o lugar. ACM e Jader não receberam em seu embate as demonstrações de afeto e apoio que Renan recebeu após o primeiro discurso em que, da cadeira de presidente do Senado, tentou defender-se da acusação de ter transferido para um lobista de empreiteira o encargo de pagar pensão à filha fora do casamento. A fila do beija-mão que o seguiu não era desprezível: nela estavam o líder, Arthur Virgílio (AM), e o presidente nacional, Tasso Jereissati (CE), do principal partido de oposição, o PSDB. E também a lenda viva da correção política na Casa, Eduardo Suplicy (PT-SP). Em seu desvario de poder supremo apenas na aparência, pois este só lhe fora emprestado, não levou em conta a lição contida no soneto de Augusto dos Anjos: “A mão que afaga é a mesma que apedreja.” Por achar que poderia contar sempre com o espírito de corpo dos irmãos de opa, esqueceu-se de que os interesses que poderiam uni-los no início do processo os desuniriam quando viesse a lume a sucessão de denúncias da freqüente violação de leis de que tem sido acusado. Assim como a solidariedade dos iguais, a cobertura de cima, com que contava, também seria fatalmente breve, como acabou de provar sê-lo. Com o devido respeito, um senador de participação pouco relevante na história política nacional, representante de um Estado também sem peso econômico ou político na Federação, poderia ter aprendido mais em sua experiência de saltar de galho em galho. Dificilmente um chefe de governo, de qualquer partido, iria até o ponto a que ele precisava que Lula tivesse ido para salvar o aliado das armadilhas que ele próprio armou sob os pés, antes de entrar no torvelinho das denúncias e nas tentativas vãs de se defender das acusações. Pensar que este iria até o fim foi a demonstração final de que Renan Calheiros não é um aplicado conhecedor de nossa História contemporânea. O presidente é um pragmático radical e tem por guia e convicção a caça instintiva a seus interesses e a competência para alcançá-los. Nunca teve problemas para jogar bagagem indesejável ao mar - fossem Alemão e Osmarzinho, à época das greves no ABC, ou José Dirceu e Antônio Palocci, no usufruto do poder. Mais que dotado do teflon que impede que a sujeira produzida em seu nome ou a seu serviço lhe atinja a fatiota, Lula pratica com destreza o exercício de se proteger de pedras, ovos e tomates, mantendo-se sempre atrás de algum oportuno anteparo. Antes eram os citados no parágrafo acima, ontem foi o presidente licenciado do Senado, amanhã será outrem. Qualquer um vai gozar de imunidade até a hora em que algo indesejável venha a macular a luva calçada pela mão de dedos longos com que o gato alcança as sardinhas do poder sem que as brasas do jogo político lhe ponham em risco pele e pêlos. Não perceber que, neste país, ficar acima é privilégio intransferível de quem está por cima foi o tiro sem misericórdia no delírio de poder do pequeno ambicioso de Murici, que não soube cuidar de si por se imaginar capaz de se regalar sem se queimar. Agora, como relatou o poeta, “somente a ingratidão, esta pantera, será sua companheira inseparável”. |
Entrevista:O Estado inteligente
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quarta-feira, outubro 17, 2007
A brasa, a sardinha e a mão longa do gato
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