O Globo |
2/10/2007 |
Uma novela pode conter mais informações que teorias sociológicas Já escrevi aqui e repito: Gilberto Braga é nosso Balzac eletrônico. Algumas de suas novelas trouxeram contribuições para a consciência da população, fato ignorado por pessoas que acham que a cultura de massas é uma deformação da "verdadeira" arte. Não me refiro a uma mágica "tomada de consciência" para o novo. Nada disso. A História marcha dentro de nós não apenas em brados retumbantes, revoluções heróicas ou rupturas traumáticas. Uma consciência óbvia do dia-a-dia é matéria palpável que se deposita aos poucos em nossas cabeças e vai mudando o país, às vezes mais solidamente que grandes contradições políticas. Nossa petite histoire nos transforma. Assim como o tumor no intestino de Tancredo levou o Brasil para outro rumo, assim como o porre de Jânio inverteu nossa política, vimos que um dos impulsos para o impeachment do Collor veio do seriado "Anos rebeldes" na TV, que mostrava a luta de jovens contra a ditadura; a novela "Vale tudo" revelou "aquela festa pobre para a qual não nos tinham convidado, para nos convencer a pagar sem ver toda essa droga que já vem malhada antes de nascermos", como cantava o genial Cazuza pela voz de Gal Costa na abertura - lembram? "Paraíso tropical", que bateu 60 pontos de Ibope, faz parte dessa saga que nos ajuda a berrar internamente: "Brasil, mostra a tua cara!!" Vivemos um tempo em que o Brasil está mostrando a cara como nunca. Há alguns anos, a população tinha uma opinião difusa de seus males políticos e éticos: "Ahh... são todos uns ladrões... ahh... isso não tem jeito, estamos à beira do abismo..." Agora, depois da democratização, depois de 20 anos de liberdade de imprensa, o "mal nacional" passou a ter personagens cada vez mais claras. O chofer de táxi não me pergunta mais: "Então, seu Jabor, esse país vai pro brejo?" Não, ele me pergunta: "E aí, o Renan cai ou não?" Nosso "mal" agora tem personagens, dentro e fora da TV. Wagner Moura (Olavo) ou Taís (Alessandra Negrini) têm contrapartidas políticas em gente como Dirceu ou Ideli (aliás, vocês viram a "Veja" desta semana, com a Salvatti metida em tramóias de ONGs?), e a novela do Aguinaldo Silva, "Duas caras", promete continuar a saga inspirada na política. Alguns momentos recentes do show do Parlamento e do Executivo foram inesquecíveis como teatro ou cinema: o discurso do Roriz, uivando com gemidos melodramáticos, a invasão da Câmara pelo Bruno Maranhão do MST, o duelo de Jefferson com Dirceu, um agon raro até nos gregos, a atuação de megastar de Lula na reeleição, correndo pela passarela como um Mick Jagger do ABC, berros, socos no plenário, ah, Deus... tanta fartura... A política já é uma ficção barata mais inverossímil do que os folhetins. Nas novelas, as personagens malvadas ou psicopatas são muito mais interessantes que as boazinhas e fazem mais sucesso. Claro, são reconhecidas pelo grande público, que sabe que (ao contrário do que muito intelectual engajado e mecanicista pensa) para entender o Brasil é melhor estudar as classes dominantes do que as vítimas de seus crimes históricos. Lamentar que a Justiça é injusta ou que os famintos têm fome, não adianta. Também não tem sentido propagar uma "santidade" que os pobres assumiriam pelo sofrimento e exclusão. Miséria não santifica nem faz heróis. Importa é entender os responsáveis por nossa desgraça histórica. Ler Sérgio Buarque ou Raimundo Faoro é muito mais esclarecedor que Florestan Fernandes. A miséria do povo não explica o país, o país que os donos do poder organizaram é que explica nossa miséria. Não li este livro "A cabeça do brasileiro", de Alberto Carlos Almeida, que está sendo atacado como "fascista", quando parece que ele apenas teve a coragem de analisar seriamente o óbvio: que a miséria produz ignorância, preconceito, voracidade e crime. Coitado... por que foi mexer nos dogmas da santidade da estupidez? Exatamente aquela que o Lula cultiva tanto, ao elogiar a própria ignorância diante de seus jovens eleitores. Lula, junto a Edir Macedo, seu mais recente amigo de infância, não é bobo e confia em seus pelotões de analfabetos, origem da fortuna milionária de Edir e de seu prestígio político invencível. A educação e a cultura que o crescimento promove em São Paulo, por exemplo, são muito mais democráticas e modernizadoras que a boçalidade cultivada com zelo pela burguesia nordestina - a indústria da seca dos cérebros. Por um lado, a democracia nos trouxe uma visão mais complexa de nossas doenças endêmicas. Por outro, o simplismo que este governo de sindicalistas propõe nos leva a um regressismo que pode destruir a delicadeza da liberdade e o avanço da consciência histórica. Muito mais do que conceitos fechados, totalizantes, recortes severos e radicais, a ficção democrática, lúdica, não ideológica, o retrato sem contornos de uma novela pode nos revelar, pelas imagens, caras, falas, o entendimento de que a realidade é extensa, não controlável e essencialmente democrática. Li, num texto de um cara ótimo, Ernest Becker, chamado "A frágil ficção", o seguinte: "A liberdade do homem é uma liberdade fabricada. E ele paga um preço por isso. Temos de defender a completa fragilidade de nossa ficção delicadamente constituída". A importância da democracia é justamente o respeito a um mistério que há em nosso destino. Prendê-la em dogmas superados e fracassados é um dos perigos que corremos, tanto na cultura como na economia. Carlos Alberto Sardenberg também escreveu, outro dia, sobre a política econômica da velha esquerda: "Por não aceitar o funeral do socialismo, o Brasil se atrasa e perde as imensas oportunidades que o capitalismo global oferece". É isso aí. Apesar da burrice dominante, o país vai mudando. |
Entrevista:O Estado inteligente
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terça-feira, outubro 02, 2007
Arnaldo Jabor - A consciência do mal em "Paraíso tropical"
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