Entrevista:O Estado inteligente

sábado, julho 21, 2007

Claudio de Moura Castro

Sociedade iterativa

"Aumentou a busca de soluções pelo caminho
iterativo, de tentativa e erro, em substituição
ao foco, ao raciocínio, à concentração e à
elaboração intelectual"

Ao subir o Corcovado para fotografar o Rio de Janeiro, Marc Ferrez levava uma câmera de 35 quilos e, como filme, pesadíssimas chapas de vidro. Assim era a fotografia no fim do século XIX. Para não cansar o lombo, era preciso acertar da primeira vez. George Eastman inventou o filme de rolo. Mas, para trocar o filme, a câmera tinha de voltar para a fábrica. Com o filme de 35 milímetros, para obter um bom retrato, um fotógrafo profissional tira 100 ou 200 fotos. Na digital, o custo de apertar o obturador caiu a zero. Ferrez tinha de pensar muito antes de bater uma foto. Hoje, fotografa-se com furor, na esperança de que alguma foto preste. No cinema se deu algo parecido. A filmagem era uma operação cara. Mas o vídeo é regravável e no digital é grande a tentação de gravar horas a fio, para aproveitar minutos.

Ilustração Atômica Studios


No teatro, são necessários muito ensaio e forte rigor para a representação sair fluida todas as noites. No cinema, filma-se a cena várias vezes, até que ela fique boa. Por tentativa e erro, acerta-se. Por isso, há cada vez mais cinema, em comparação com o teatro. A música ao vivo perde espaço para as gravações, nas quais a peça é tocada no estúdio repetidas vezes. A melhor versão será para sempre congelada no disco (se preciso, a eletrônica conserta a desafinação). Substituímos pela iteração (ou seja, pela ação reiterada de tentativa e erro) uma busca rigorosa e reflexiva da solução técnica ou estética. Tentamos até acertar. Não pensamos muito, vamos fazendo profusamente, na esperança de topar com alguma coisa boa. É a "arte lotérica".

A prova de escolha múltipla, um avanço precioso, contrabandeia um elemento de tentativa e erro no processo de resposta. Se a alternativa B não pode ser correta, é eliminada. Abandonando as respostas claramente erradas, tenta-se a sorte nas outras. Não bastasse isso, há computadores que corrigem provas de redação quase tão bem quanto humanos. O que é mais incrível: dão notas sem entender o texto!

A socióloga Sherry Turkle mostra como os jovens transformam um jogo de computador em um processo de tentativa e erro que ignora completamente o conteúdo educativo. O jovem não lê as instruções, não sabe e não quer saber do princípio que está sendo ensinado. Ele é um perito em experimentar soluções em alta velocidade, até que chegue à resposta certa (pouco importa o que significa). Das lições que eram para ser aprendidas com o jogo, ele passou longe. No fundo, ele imita o computador na forma como este resolve muitos problemas: por tentativa e erro, sem entender nada. De fato, é assim que o computador lida com algumas equações complicadas: tenta soluções em alta velocidade, até acertar. O emprego do computador na pesquisa mudou a maneira de explorar o mundo. Em vez de quebrarem a cabeça teorizando, alguns cientistas enfiam nele uma montanha de dados, buscando correlações entre as variáveis. Partem do nada. Não têm teorias nem hipóteses. As correlações encontradas no processamento daqueles dados serão interpretadas mais adiante. É a ciência iterativa.

A propaganda convencional dirige seu apelo aos públicos mais apropriados. A internet permite o spam sem destinatário certo, que vale a pena por ser quase grátis. A medicina clássica valorizava o "olho clínico" e a apalpação pelos médicos, que são capazes de examinar o paciente e dar o diagnóstico certeiro. Hoje, muitos médicos começam encomendando ao paciente dezenas de exames, para ver o que aparece. Até os casamentos são iterativos. Casa-se para experimentar. Se não der certo, tenta-se novamente. Sempre houve busca iterativa e nem tudo hoje em nossa sociedade é feito por esse método (e bendito seja o computador em que escrevo!). Mas os avanços tecnológicos e o espírito dos tempos tiveram como efeito aumentar a busca de soluções por esse caminho, substituindo-se o foco, o raciocínio, a concentração e a elaboração intelectual.

Avanço ou retrocesso? Difícil dizer. Cresceu imensamente o número de problemas com que nos defrontamos. Por que não proceder por tentativa e erro, usando o apoio da tecnologia? É mais mecânico e tem exigências intelectuais muito menores. Sobrará mais tempo para lidar com os problemas rombudos? Sobreviverá a beleza do intelecto compondo suas fascinantes partituras? Quem sou eu para responder.

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