Entrevista:O Estado inteligente

sábado, agosto 12, 2006

O que vem depois da euforia?

VEJA

A economia do Nordeste vive uma fase
dourada, com aumento chinês no
consumo... mas a festa pode não durar


Juliana Duailibi

Divulgação
NA FILA DOS NOVOS INVESTIMENTOS
Fábrica de produtos de higiene pessoal (acima) e empresa de um pólo de confecções, ambas em Pernambuco: aproveitando o Porto de Suape
Leo Caldas/Ag. Titular


Nos quase quatro anos de governo do presidente Lula, a economia do Nordeste deve crescer um pouco mais do que a média brasileira. É uma boa notícia, sobretudo porque os nove estados nordestinos ainda formam a região mais pobre do país. Em alguns setores da economia, contudo, o Nordeste fez mais, muito mais, do que superar a média brasileira – entrou num ritmo chinês. Entre maio de 2005 e maio passado, conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), as vendas no varejo cresceram 17,7% – um número muito vistoso, que tem animado as previsões otimistas dos economistas e atraído os empresários. A título de comparação, registre-se que, no Sudeste, a região mais rica do Brasil, o crescimento do comércio no mesmo período foi de menos de 7%. Com esse desempenho, o Nordeste, com seus 51 milhões de habitantes, pode estar no caminho de se tornar um dos maiores mercados consumidores do país. Nos últimos anos, só Pernambuco, dono da segunda maior economia da região, recebeu 73 novas indústrias de alimentos destinados aos consumidores da região e ao mercado externo.

"A maior parte dessas pessoas ainda pertence às classes C, D e E, mas elas representam um mercado de enorme potencial", diz Ronaldo Perri, diretor regional de vendas da multinacional Elma Chips, que investiu 20 milhões de reais em uma nova fábrica de salgadinhos no Recife. A Nestlé, outra gigante do ramo de alimentos industrializados, está construindo uma fábrica em Feira de Santana, no interior da Bahia, onde vai produzir massas, cereais, achocolatados e café para atender à demanda regional. Serão pelo menos 100 milhões de reais em investimentos na nova unidade. A Unilever, que fabrica desodorante, xampu, creme dental, sabão em pó, entre outros produtos, inaugurou em 2005 uma fábrica em Ipojuca, no interior de Pernambuco. Além do mercado interno, a empresa investe 63 milhões de reais de olho nas vantagens de exportar seus produtos pelo Porto de Suape. No Piauí, a Bunge Alimentos, uma das maiores multinacionais do mundo no seu ramo, abriu uma fábrica no município de Uruçuí, em 2003.

Os reflexos no consumo são expressivos. Em todo o Brasil, houve um incremento do comércio, mas coube ao Nordeste puxar o índice para cima. Conforme um levantamento da ACNielsen, empresa especializada em pesquisa de mercado, os brasileiros estão consumindo 4% a mais que nos últimos doze meses, registrando-se a maior alta, de 8,4%, entre os nordestinos, que passaram a comprar mais alimentos perecíveis, material de limpeza, higiene e beleza. Há casos exemplares. Na região da cidade de Santa Cruz do Capibaribe, no sertão pernambucano, um pólo de confecções, que produz roupa de baixo custo, emprega quase 80.000 pessoas e fez o PIB da cidade crescer 60% numa década. Um estudo produzido pela consultoria Deloitte, batizado de Panorama Empresarial Nordeste, indica ainda que há um clima de euforia entre o empresariado da região. Foram analisados dados de 49 companhias, que representam um faturamento anual de 12 bilhões de reais. Todos os indicadores relacionados a resultados dos negócios mostraram-se positivos em 2005 e sinalizam otimismo para 2006. A lucratividade também foi maior para 66% das empresas. Quase todas projetam um crescimento substancial do faturamento até o fim do ano.

Apesar dos novos investimentos, a produção industrial nordestina ainda cresce muito pouco, se comparada à média de outros estados. O Nordeste experimenta uma bolha de crescimento inflada pelo aumento do consumo, que, por sua vez, é lastreado em grande parte no dinheiro que os brasileiros que trabalham e pagam impostos carreiam para a região em programas assistenciais gerenciados pelo governo federal, como o Bolsa Família. Os aumentos reais do salário mínimo, associados aos milhões de novos consumidores proporcionados pelo Bolsa Família, são o motor da economia de pequenas cidades. Em Pedra Branca, no Ceará, por exemplo, os recursos do Bolsa Família aumentaram em quase 50% o dinheiro que circula no município. A bodega e a feira da cidade são os primeiros lugares onde se percebem os reflexos desse aumento de renda. "Quanto mais pobre, mais forte é essa regra. Esse dinheiro é que faz girar o comércio local", diz Rosa Marques, coordenadora do Núcleo de Pesquisa em Políticas para o Desenvolvimento Humano da PUC-SP. Em março passado, uma pesquisa realizada em parceria entre duas universidades federais, a Fluminense e a da Bahia, constatou que quase 60% das pessoas no Nordeste passaram a consumir mais depois que entraram para o Bolsa Família. Aumentaram em especial as compras de leite e carne. Mas não apenas o estômago foi contemplado. Outro trabalho, feito pelo instituto Datafolha, mostrou aumento do consumo de perfumes e cosméticos.

Mariana Guerra/Jc Imagem/AE

A BOLHA PODE ESTOURAR
Operários trabalham em trecho da Transnordestina (acima) e uma fábrica nova de salgadinhos: o consumo cresce, mas faltam investimentos em infra-estrutura

Renato Spencer/JC Imagem/AE

Ninguém discorda de que a vida material dos nordestinos está melhorando a cada ano. O que se discute é se essa mudança de patamar é sustentável sem as injeções de dinheiro dos brasileiros que trabalham e pagam impostos. Especialistas lembram que a transferência de renda não pode ser mantida indefinidamente. Para atingir o desenvolvimento sustentável, são necessários investimentos constantes em infra-estrutura e educação, os únicos capazes de produzir uma economia que caminha com as próprias pernas. "Os atuais programas não apontam para um desenvolvimento a longo prazo. Eles dependem muito da qualidade das finanças públicas, que, no Brasil, nem sempre encontram um céu de brigadeiro", alerta o economista Gustavo Maia Gomes, da Universidade Federal de Pernambuco e diretor-geral da Escola Superior de Administração Fazendária. Em termos de investimentos em infra-estrutura, o trabalho do governo no Nordeste deixa a desejar. Há investimentos relevantes, como a construção da Ferrovia Transnordestina, uma obra de 4 bilhões de reais, e a de refinarias na Bahia, que deve consumir algo em torno de 11 bilhões de reais. A grande aposta governamental para alavancar os investimentos na região, no entanto, concentrou-se nas chamadas Parcerias Público-Privadas (PPPs), que simplesmente não saíram do papel.

A situação de pobreza de boa parte da população nordestina torna imperativo para qualquer governo aplicar programas de assistência. Durante décadas, uma das formas de transferência de recursos às vítimas da seca nordestina eram as chamadas frentes de trabalho. Os trabalhadores rurais se cadastravam para prestar algum tipo de serviço braçal em troca de ajuda em dinheiro. Isso evitou que muita gente se curvasse diante da miséria, mas não melhorou em um milímetro sequer a vida desses trabalhadores ou de seus descendentes. A falta de investimentos que tornem o crescimento nordestino sustentável pode resultar numa situação parecida, na qual a bonança nunca se consolida. Um exemplo concreto: boa parte dos principais postos de trabalho das novas fábricas que estão sendo construídas na região não será ocupada por nordestinos. "Os empregos que requerem maior qualificação acabam indo para gente que vem do Sul", afirma o historiador Severino Vicente, da Universidade Federal de Pernambuco. O economista Sérgio Vale, da MB Associados, tem um prognóstico amargo: "Todo esse crescimento que vemos no Nordeste nos últimos anos tende a se perder. O que acontece hoje é um estímulo de renda, não um estímulo de emprego. O consumo atual está baseado nisso. O que hoje muitos chamam de 'a China nordestina' vai cair como um castelo de cartas". Para que a profecia de Vale não se materialize, é vital que o Nordeste deixe de ser encarado apenas como um celeiro de votos, onde os políticos vão periodicamente comprar seu mandato a preço de banana.

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