O livro Viagens com o Presidente mostra
a face nada protocolar do petista
Thaís Oyama
Ricardo Stuckert/PR |
O presidente Lula e sua mulher, Marisa, na Índia, em 2004 |
No jargão do jornalismo, um "repórter setorista" é aquele especializado na cobertura de determinado assunto ou instituição. Em Brasília, o Palácio do Planalto é, depois da Câmara e do Senado, o lugar que reúne o maior número de setoristas – são mais de vinte. A serviço de diferentes veículos, eles ocupam uma sala no andar térreo do palácio e têm como principal missão acompanhar o dia-a-dia do presidente da República. Trata-se de uma tarefa ingrata. O aparato que cerca um presidente, que inclui uma pesada estrutura de assessoria de imprensa, tende a burocratizar o trabalho dos repórteres, e o acesso a informações exclusivas muitas vezes é nenhum. Por causa disso, a cobertura do Planalto sempre se notabilizou pelo excesso de notas oficiais e pela escassa produção de "furos" – em suma um terreno árido para a reportagem. Os setoristas Eduardo Scolese, do jornal Folha de S. Paulo, e Leonencio Nossa, de O Estado de S. Paulo, no entanto, escaparam dessa maldição. Tomando como matéria-prima a rotina do palácio e as dezenas de viagens presidenciais que acompanharam nos últimos anos, eles produziram o retrato de um político pouco conhecido dos brasileiros. Ao longo de quase 300 páginas, o livro Viagens com o Presidente (Editora Record) descreve um Lula vaidoso a ponto de censurar um assessor por andar malvestido ao seu lado e propenso a ataques de fúria, como o que o acometeu diante de um subordinado que se esqueceu de trazer-lhe uma toalha (veja trechos do livro no quadro abaixo e na pág. 78). Lula, saberá o leitor, mesmo quando não está irritado, recorre com tanta naturalidade ao uso de palavrões que, entre os petistas palacianos, se difundiu a crença de que, quanto mais pesado o palavrão proferido por ele, maior é o seu grau de intimidade com o interlocutor. "Daí, ouvir um palavrão (do presidente) pode significar status", dizem os autores.
Apesar de dizer que seu antecessor, Fernando Henrique Cardoso, viajava demais, Lula, ao assumir o governo, deixou o tucano comendo poeira. Só nos três primeiros anos de sua administração, fez 85 viagens – quase o dobro do que realizou FHC nos quatro anos de seu primeiro mandato. Segundo cálculo dos autores, o petista registrou uma decolagem internacional a cada 23 dias. Em cada uma dessas viagens, teve setoristas em seu encalço. Como toda relação que envolve convivência estreita e diária, a do presidente com os jornalistas do Planalto tem momentos de paz, de conflito e também de pura implicância. Um episódio ocorrido em Pretória, na África do Sul, dá a noção do grau de puerilidade a que as partes podem chegar. Minutos antes de dar uma entrevista, Lula resolve cochichar algo no ouvido de um assessor, observado pela multidão de repórteres que o aguardam. Diz um trecho do livro: "Os jornalistas ficam intrigados. À noite, depois de três copos de cerveja, o assessor relata num bar as palavras do presidente: 'Tá todo mundo achando que é algo importante o que estou dizendo para você, mas te chamei aqui só para deixar esses caras curiosos e excitados'". Em outro trecho, mais adiante, é a vez de os jornalistas reagirem. No ápice da crise do mensalão, Lula foi obrigado a fazer um pronunciamento na TV em que se eximiu de responsabilidade pelo escândalo, atribuindo-o a traidores que jamais identificou. Setoristas do Planalto encontraram nessa fala uma forma de "vingar-se" do constante desprezo presidencial: "A pergunta da traição passou a ser usada por repórteres em dias de mau humor do presidente, só para irritá-lo. Bastava ele passar direto sem responder a questões do dia para um jornalista gritar: 'Quem traiu o senhor, presidente?'".
Viagens com o Presidente não analisa nem desvenda questões – limita-se a reportar e, nesse sentido, é superficial. Embora sua graça esteja na trivialidade dos fatos relatados, o que começa como qualidade, de tanto repetir-se, acaba virando defeito – alguns episódios, excessivamente banais, poderiam ter sido dispensados. O livro de Eduardo Scolese e Leonencio Nossa, porém, tem seu mérito ao mostrar o presidente Lula sob um ângulo até agora inédito: o da intimidade só revelada nos bastidores das cerimônias oficiais, nos intervalos de uma entrevista coletiva e na descontração de uma cabine de avião. Viagens com o Presidente observa Lula pelas frestas – e o que se vê a partir delas surpreende e diverte.
Trechos do livro Viagens com o Presidente | ||||||
O MELÔ DO DIRCEU
CAFÉ E CIGARRILHA "Lula não mede as palavras e fala o que quer (...). Embora não seja cordial como o antecessor, o presidente é visto com simpatia pelos seguranças por ter, segundo palavras dos próprios, a disposição de trabalho e o jeito durão de um militar. Não tem muita paciência. Para ele, tudo tem que ser na hora. Costuma estressar-se com auxiliares a qualquer vacilo. Fica nervoso, por exemplo, se vai a algum lugar que não tenha um café expresso à disposição. Ajudantes-de-ordens, assessores e seguranças sabem que o bom humor do presidente pode ir para o espaço se ele não conseguir fumar sua cigarrilha com uma xícara de café na mão." "LÁ VEM O LEÃO" "Nas viagens, em conversas pelo rádio, os seguranças recorrem a inúmeros códigos para garantir a integridade do chefe do governo. Em cada missão, o presidente é chamado por um apelido, geralmente em referência a mamíferos ou planetas (...). 'Lá vem o Leão', 'a Pantera está a caminho', 'Saturno tem pressa e está nervoso', o 'Eclipse apareceu'. Já a primeira-dama é muitas vezes chamada de 'Estrela' ou 'Damasco' (...). Os integrantes do Itamaraty têm um tratamento carinhoso e diferenciado, com direito até a nome de desenho animado. Diante da aproximação dos diplomatas, os seguranças comunicam os sinais de alerta: 'Lá vêm os Bambis' ou 'as Gazelas estão a caminho'." "IGUAL A EXAME DE PRÓSTATA"
O CIÚME DA PRIMEIRA-DAMA "Marisa Letícia não se sente bem ao lado de seguranças. Se for mulher, pior ainda. Segurança mulher e ainda mais bonita, sem chance. No início do governo petista, uma militar alta e loira que fazia a segurança de Ruth Cardoso foi logo dispensada. A primeira-dama quer vê-las bem longe do marido (...). Ela gosta de cuidar da privacidade da família. Um exemplo disso ocorreu no início de governo, quando cortou as asinhas de alguns ajudantes-de-ordens que trabalhavam no Alvorada e se achavam no direito de circular livremente nas áreas privativas da residência. Marisa proibiu esse vaivém." A "HORA DA PRINCESA"
EU ODEIO O SUCATÃO
A "SENZALA" DO AEROLULA "Ao entrarem no Aerolula, ministros, assessores e demais credenciados encontram seus respectivos nomes em etiquetas coladas pela FAB em cada um dos assentos (...). Em conversas sem a presença do presidente, ministros e integrantes do alto escalão do governo chamam a parte traseira da aeronave de 'senzala', enquanto a cabine presidencial leva o apelido de 'casa-grande'. Ficar na senzala durante todo o vôo e não ser chamado por Lula para uma conversa na cabine presidencial é um sinal de falta de prestígio. Muitos preferem o constrangimento de se oferecer para uma conversa a correr o risco de serem ignorados por Lula na viagem." DORMINDO NO CINEMA
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