Entrevista:O Estado inteligente

segunda-feira, agosto 28, 2006

Racismo, pobreza e educação Carlos Alberto Di Franco

O ESTADO

Não Somos Racistas (Editora Nova Fronteira, 143 págs., R$ 22) é o título do recém-lançado livro do jornalista Ali Kamel. A obra é um desabafo que, de algum modo, contribui para reconduzir torrentes de águas turvas ao leito do rio. Trata-se de um esforço, sereno e aberto, de mostrar o outro lado, freqüentemente omitido ou camuflado, da discussão sobre as políticas compensatórias ou “ações afirmativas” para remir a pobreza que, supostamente, castiga a população negra.

Kamel, diretor-executivo de Jornalismo da Rede Globo de Televisão e ex-aluno do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), é um intelectual inquieto. Por isso, questiona pretensas unanimidades. Fustigado pela sua intuição de repórter, flagrou um denominador comum nos diversos projetos instituindo cotas raciais: a divisão do Brasil em duas cores, os brancos e os não-brancos, com os não-brancos sendo considerados todos negros. A miscigenação, riqueza maior da nossa cultura, evaporou nos rarefeitos laboratórios dos legisladores. “Certo dia”, comenta o jornalista, “caiu a ficha: para as estatísticas, negros eram todos aqueles que não eram brancos.(...) Pior: uma nação de brancos e negros onde os brancos oprimem os negros. Outro susto: aquele país não era o meu.”

Do susto nasceu a reflexão. O desvio começa na década de 1950, pela ação da escola de Florestan Fernandes, da qual participava Fernando Henrique Cardoso. Para o autor, FHC presidente foi sempre seguidor do jovem sociólogo Fernando Henrique. Convencido de que a razão da desigualdade é o racismo dos brancos, FHC foi, de fato, o grande mentor das políticas de preferência racial. Lula, com sua obsessão populista, embarcou com tudo na canoa das cotas raciais. O Brasil, como todos vivenciamos, nunca foi um país racista. Tem, como é óbvio, pessoas racistas. A cultura nacional, no entanto, sempre foi uma ode à miscigenação. As políticas compensatórias, certamente movidas pela melhor das intenções, produzirão, estou certo, um efeito perverso: despertarão o ódio racial e não conseguirão cauterizar a ferida da desigualdade.

Ali Kamel, ademais de anotar que, segundo o consenso dos geneticistas, “raça é um conceito social, não um conceito científico”, bate forte na decisão que dividiu o Brasil em brancos e negros, quando o governo FHC determinou que os documentos oficiais deveriam juntar os pardos, mulatos e pretos sob um só rótulo: negros. Matou-se, por decreto, a realidade da miscigenação. Facilitou-se, falseando a realidade, o argumento de que os negros são 48% da população e 65,8% dos pobres. Errado. Destrinchando as estatísticas, o jornalista mostra que os negros são 6,4% da população (11 milhões); os pardos são 41,7% (76 milhões); e os brancos, 51% (93 milhões). Dos 57 milhões de pobres, 34 milhões são pardos (58,7% do total), 4 milhões são negros (7%) e 19 milhões são brancos (34,2%). Entre os pardos, os pobres são 44,7%; entre os negros, 36,4%; e entre os brancos, 20,4%. Quer dizer: os pardos são mais pobres que os negros. Nada nas estatísticas prova que a desigualdade seja causada por racismo. “Somar pardos e negros”, diz o autor, “seria apenas um erro metodológico se não estivesse na base de uma injustiça sem tamanho.” Os números relativos aos pardos - porcentualmente, os brasileiros mais pobres - serviram para engordar as estatísticas de pobreza dos negros. Mas, na hora de distribuir os benefícios, boa parte dos pardos (os pardos/brancos) é excluída.

Esgrimindo argumentos convincentes, o jornalista mostra que os desníveis salariais entre brancos e negros não têm fundamento racista: ganham menos sempre os que têm menos escolaridade. “Os mecanismos sociais de exclusão têm como vítimas os pobres, sejam brancos, negros, pardos, amarelos ou índios. E o principal mecanismo de reprodução da pobreza é a educação pública de baixa qualidade.” Esta é a tese central de Ali Kamel. Só investimentos maciços em educação podem erradicar a pobreza. É preciso fugir da miragem do assistencialismo. “Tire o dinheiro do programa social e o pobre voltará a ser pobre, caso tenha saído da pobreza graças ao assistencialismo. E o pior: num país pobre como o nosso, cada centavo que deixa de ir para a educação contribui para a manutenção dos pobres na vida trágica que levam”, adverte o autor.

Numa primeira reflexão, nada mais justo do que dar aos negros a oportunidade de ingressar num curso superior. Mas, quando examinamos o tema com profundidade, vemos que não se trata de uma providência tão justa quanto parece. Ao tentar corrigir a injustiça que, historicamente, marcou milhões de brasileiros, cria-se um universitário de segunda classe, que não terá chegado à universidade por seus méritos. Ademais, ao privilegiar etnias, a lei discrimina outros jovens brasileiros pobres que não se enquadram no perfil racial artificialmente desenhado pelo legislador.
Oculta-se a verdadeira raiz da injustiça: a baixíssima qualidade do ensino. Como sublinha Kamel, “os negros brasileiros não precisam de favor. Precisam apenas de ter acesso a um ensino básico de qualidade, que lhes permita disputar de igual para igual com gente de toda cor”. Os orientais, parte diminuta da nossa população, ocupam porcentagem significativa das vagas nas melhores escolas públicas. Por quê? Seus pais e avós, com grande sacrifício, investiram na educação de seus filhos. É uma equação que não tem erro.

Não existia até agora verdadeiro debate a respeito das chamadas “ações afirmativas”. Respirava-se um clima de aparente unanimidade. Ali Kamel, exercendo seu direito de cidadão e jornalista, reabre a discussão. É importante, caro leitor. Para você e para mim. Afinal, o que está em jogo é a própria identidade cultural do nosso país.

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