Livro mostra presidente xingando Kirchner, após beber três doses de uísque
CLÓVIS ROSSI
COLUNISTA DA FOLHA
O "Lulinha paz e amor", essa hábil construção do marketing político, desaparece entre a terceira e a quarta dose de uísque e se transforma em uma catarata de palavrões e ofensas a presidentes e países supostamente aliados.
É o que contam Eduardo Scolese e Leonencio Nossa, que cobrem o Palácio do Planalto para, respectivamente, a Folha e "O Estado de S. Paulo", no livro "Viagens com o Presidente - Dois Repórteres no Encalço de Lula do Planalto ao Exterior".
Scolese e Nossa relatam jantar na embaixada do Brasil em Tóquio, no final de maio de 2005, presentes cerca de 20 pessoas, todos brasileiros, no qual, após beber três doses de uísque e com a quarta ao meio, o presidente diz coisas como:
"Tem horas, meus caros, que eu tenho vontade de mandar o Kirchner para a puta que o pariu".
"Aquele lá [referindo-se a Jorge Battle, então presidente do Uruguai] não é uruguaio porra nenhuma. Aquele lá foi criado nos Estados Unidos. É filhote dos americanos."
"O Chile é uma merda. O Chile é uma piada. Eles fazem os acordos lá deles com os americanos. Querem mais é que a gente se foda por aqui. Eles estão cagando para nós."
Sobrou também para os fazendeiros: "Tem que acabar com essa porra de fazendeiros que toda hora vem pedir dinheiro ao governo".
O discurso, se é que pode se dizer assim, de Lula em Tóquio se deu no exato momento em que fracassavam os esforços do governo para impedir a CPI dos Correios, aquela que acabou expondo o mensalão e levou o presidente a dizer-se traído, sem no entanto apontar os traidores.
O livro de Scolese e Nossa, que acompanham o dia-a-dia palaciano há dois e três anos, respectivamente, relata uma brincadeira dos repórteres: perguntar, nas poucas vezes em que podiam se aproximar do presidente, quem era o traidor.
"Viagens com o Presidente" tem o grande mérito de tratar Lula -e, de quebra, uma porção de ministros e assessores- como pessoa física, ao contrário do que ocorre, habitualmente, no noticiário a respeito das atividades presidenciais.
O presidente (qualquer que seja) é apresentado apenas como a pessoa que faz discursos, assina atos, inaugura obras, reúne-se com seus pares e assim por diante. Dá a impressão de que não come, não bebe, não faz pipi, sexo ou qualquer outra atividade inerente ao ser humano.
Já na sua segunda página (fora os agradecimentos, o sumário e a apresentação), os dois repórteres contam, por exemplo, o primeiro diálogo entre Lula e Fernando Henrique Cardoso, no dia seguinte à vitória do petista em 2002.
Lula: "Fernando, como você faz para dar uma escapadinha?"
FHC: "É impossível, Lula...impossível...Aqui tem ajudante-de-ordens para todos os lados".
O Lula-pessoa-física que emerge do livro tem pouco ou nada a ver com o "paz e amor" do marketing. Ironiza auxiliares, pode ser bastante ríspido com eles e usa palavrões com uma freqüência fora do comum. Os auxiliares parecem não se incomodar. Ao contrário: "Ouvir um palavrão [do presidente] pode significar status" perante Lula, contam os dois repórteres.
O livro não é nem pretende ser um retrato acabado de Lula. Até porque as conhecidas dificuldades de acesso ao presidente permeiam boa parte das páginas. Mas mostra, sim, bastidores do funcionamento da Presidência que, no cotidiano do jornalismo, acabam sendo, na melhor das hipóteses, pé de página nos jornais.
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