O Globo |
22/8/2006 |
O que define um democrata? É a crença de que o povo tem o direito de escolher os seus governantes, segundo as suas crenças, os seus valores e o que acha melhor para si e para a coletividade. Pode escolher quem quiser, menos aqueles que não acreditam na democracia e querem destruí-la ou restringi-la. Isso não implica de forma alguma dizer que a crença dos democratas é que o povo escolhe sempre bem. Inúmeras experiências mostram que há escolhas infelizes, mas é sempre melhor o povo escolher mal do que não escolher. Digo isso diante de análises que leio aqui e ali, segundo as quais o povo no Brasil, descrente, estaria votando desesperançado e sem vontade. Depois de tantos escândalos, o povo estaria dando um voto resignado. Não é verdade. Admito que é ainda prematuro falar em resultados de uma eleição que mal começou, mas, diante dos números das pesquisas, há um sinal claro de que pode haver tudo menos resignação. Não compartilho a tese de que o povo esqueceu os escândalos que cercaram o PT. Num país com imprensa livre, com bons noticiários na TV e no rádio, tudo foi informado extensiva e intensivamente. Não houve episódio que não tenha sido destrinchado, contado, recontado, explicado, avaliado. Mais de um ano depois da eclosão das primeiras denúncias, o povo sabe o que aconteceu. E, no entanto, tem demonstrado, até aqui, não hesitação ou dúvida, mas apoio enorme ao candidato do partido que foi o pivô de todos os escândalos. A persistir esse quadro, não haverá muitas hipóteses. A primeira é que o povo, sabedor do que aconteceu, acredita na inocência do presidente. A segunda é que o povo acredita no envolvimento do presidente, mas decidiu perdoá-lo. A terceira é que o povo acredita no envolvimento do presidente, mas não acha isso relevante. Dependendo de qual das três hipóteses esteja mais próxima da verdade, as implicações para um julgamento mais isento sobre o caráter nacional são também três, mas eu não acho necessário discorrer sobre elas. Da mesma forma, acredito firmemente que o Congresso que aí está e o que está por vir é a nossa cara, a cara do país. Culpar o sistema político pelas escolhas que fazemos é o mesmo que nos considerar inaptos para o voto. É extremamente constrangedor ouvir os políticos propondo reformas políticas cujo objetivo, em última instância, é "corrigir" o voto do eleitor, de certa forma querendo guiá-lo para que faça boas escolhas. Não pode haver pensamento mais antidemocrático. Boas escolhas para quem? Para o eleitor ou para o eleito? Não existe sistema eleitoral perfeito, e uma rápida pesquisa nos mostra que em todos os países há movimentos que tentam reformar os seus sistemas. Quem tem o voto distrital quer mudar para o voto proporcional. Quem tem o voto proporcional quer mudá-lo para o voto distrital. Quem tem proporcional com lista fechada quer mudar para lista aberta e vice-versa. O voto distrital é acusado de garantir maiorias parlamentares sólidas, mas divorciadas do real desejo do povo. O partido de Tony Blair conquistou 55% das cadeiras do parlamento, mas obteve apenas 37% dos votos. Sistemas proporcionais são acusados do defeito oposto: representam tão bem a vontade popular que fragmentam o voto, tornando difícil a formação de maiorias parlamentares. Até mesmo o voto distrital-misto, que mistura os dois sistemas, provoca situações bizarras, como a vivida pelos alemães: três meses depois das últimas eleições, ainda não se sabia quem tinha sido o vencedor (no final, prevaleceu um governo em que o perdedor também governa). Acusam o nosso sistema de ser quase único no mundo, com similar apenas na Finlândia, mas isso não é verdade: há sistemas eleitorais com lista aberta em muitos outros países. O que caracteriza o nosso sistema é que ele respeita a proporcionalidade de determinada corrente de opinião, mas dá ao eleitor o direito de votar na pessoa daquele partido em quem mais confia. No sistema de lista fechada, é a cúpula partidária quem escolhe os candidatos a serem eleitos: se o partido conquistar nas urnas o direito de eleger "N" candidatos, de antemão já se sabe quem são, pois foi a cúpula que os ordenou numa ordem de prioridade. Nas listas abertas, o partido conquista o direito de eleger "X" candidatos, mas estes serão os mais votados pelo povo, um sistema absolutamente democrático. Hoje, ouve-se que esse sistema dá origem ao Congresso tal como o conhecemos, mas isso não é culpa do sistema, mas do povo, simples assim. Querer corrigir a vontade do povo é tirar dele o direito de escolha e delegá-lo a cúpulas partidárias. Em tese, tal sistema daria chances de o vencedor na corrida presidencial fazer também a maioria no parlamento, mas de uma maneira artificial. Pensando em eleições passadas, podemos imaginar o desastre que isso seria. É só imaginar em 2002 o PT elegendo 300 deputados, em vez dos 90 que conseguiu eleger. Todos os acertos do governo Lula teriam passado, mas também todos os erros e os desvios autoritários, não dele, mas do seu partido: Conselho Federal de Jornalismo e Ancinav, dois projetos que são contra nossa índole democrática, teriam sido aprovados com folga. A beleza do nosso sistema é que o Congresso representa mais de perto o nosso povo, mesmo que, diante do espelho, não gostemos do que vemos. Um mérito esse sistema tem: serve de contraponto ao voto emocional que, muitas vezes, pode decidir a eleição presidencial. É preciso manter a cláusula de barreira, para que apenas partidos nacionais tenham vida. E é preciso encontrar uma fórmula que aumente a fidelidade partidária, para que maiorias se formem mais facilmente. De resto, para melhorar o Congresso, a reforma necessária é a da educação. Como em tudo o mais, somente com um povo educado teremos mais chances de encontrar a felicidade. Ou ao menos de tentar buscá-la de modo mais efetivo. |
Entrevista:O Estado inteligente
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