O Globo |
25/8/2006 |
Se, como indicam as pesquisas, o presidente Lula se reeleger no primeiro turno, ele se considerará absolvido pelo eleitorado, como declarou recentemente, e isso é muito ruim para a democracia brasileira. Os malfeitos que aconteceram nas suas barbas, e que de diversas formas foram acobertados por ele, não desaparecerão, mas ele terá razão em dizer que o povo o absolveu. O raciocínio perverso de que todos são iguais leva intelectuais a aceitarem a política como uma coisa suja, ou a renegarem o sentido de ética na política, numa inversão completa dos valores que levaram Lula à Presidência com o apoio desses mesmos intelectuais. Alguma culpa Lula acha que tem, caso contrário não usaria o truque de Fidel, que, para responder às críticas à ditadura que implantou em Cuba, disse que a História o absolveria. Lula não mandou ninguém para "paredon", mas o PT está envolvido, desde os anos 90 do século passado, em transações, quando não tenebrosas, pelo menos discutíveis do ponto de vista ético, e transplantou essa forma de fazer política para o governo federal em 2003. Como ele mesmo diz, Lula é a cara do PT e o PT é a sua cara, não havendo, assim, possibilidade de os métodos adotados pela "organização criminosa" que se organizou a partir do Palácio do Planalto para garantir a permanência do PT no poder, conforme acusação do Procurador-Geral da Republica, serem ignorados por ele. Ontem, em mais uma manobra errática, ele voltou a admitir que alguma coisa de errada foi feita nos gabinetes do Planalto, mas retornou à metáfora preferida do pai que está na cozinha e não sabe o que o filho está fazendo na sala. E voltou a dizer que tirou todos os envolvidos em denúncias de seus cargos. Na verdade, metade do governo teve que sair de seus cargos, mas o presidente resistiu até quando pôde, e prestou solidariedade a todos os amigos denunciados, em diversas ocasiões. Na mais recente, bateu palmas quando o ator José de Abreu, o mesmo que lamenta mas concorda com Paulo Betti que política não se faz sem colocar a mão na merda, pediu uma salva de palmas para seus amigos Josés: o Dirceu, o Genoino e o Mentor, todos envolvidos no esquema corrupto do mensalão, por terem feito o que Lula e os intelectuais reunidos na casa de Gilberto Gil consideram normal. Lula sempre foi maior que o PT, e só chegou à Presidência quando ampliou seu leque de apoios partidários. O problema é que fez à custa de dinheiro público e privado, num movimento nunca antes registrado na história política desse país, como ele gosta de se referir às proezas que imagina inaugurais em seu governo. O mensalão foi, sim, um passo adiante na corrupção política do país, nunca houve antes a comprovação de um poder comprando literalmente um outro poder, como o Executivo fez com o Legislativo nos últimos anos. É um obstáculo e tanto quando Lula se dispõe a promover um pacto nacional em torno de algumas metas, como as contidas no documento divulgado ontem pelo Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES). É o movimento certo no momento errado, num ambiente político que não permite muitas esperanças de que haverá espaço para um pacto suprapartidário. É difícil o PSDB e o PFL serem contra metas de desenvolvimento e de inflação, ou contra a manutenção do superávit primário em 4,25% do PIB, mas está cada vez mais difícil também de a oposição esquecer o passado petista para olhar um futuro em que ela se vê no poder. Essa espécie de Carta ao Povo Brasileiro II, a Missão, pretende zerar o jogo a partir de um segundo mandato presidencial, mas cada vez fica mais improvável uma união política formal, embora seja previsível que a oposição de hoje apoiará as reformas estruturais que venham a ser apresentadas. Estamos na verdade em uma encruzilhada: os que cometeram as falcatruas têm o apoio de suas estruturas partidárias e só estarão fora do jogo pela ação da Justiça ou dos eleitores. Os que forem eleitos, assim como Lula, se considerarão absolvidos, o que, se não pode ser discutido sem que se coloque em dúvida a característica inclusiva de nosso sistema eleitoral, é preocupante do ponto de vista do caráter nacional. Ontem o presidente Lula, lançando ainda de maneira indireta sua proposta de pacto nacional, disse que é preciso pensar mais no que une do que no que divide os diversos grupos políticos, além de voltar a defender a tese de que a crise é generalizada, do sistema político que apodreceu, e não de pessoas ou de um único partido. Essa é a tese perfeita para que se passe uma borracha no passado e se jogue as negociações para o futuro. Já há emissários em campo fazendo contatos com o que chamam de PSDB do futuro, que seriam Serra e Aécio, virtuais governadores de São Paulo e Minas, para um acordo de convivência política que não inviabilize a governabilidade de um segundo mandato que Lula começará forte pessoalmente e fraco politicamente. O ex-ministro Antonio Palocci tem mantido contato com antigos membros da equipe econômica do governo tucano, e, eleito deputado federal, poderá vir a ser o grande coordenador do governo na Câmara para aprovação das reformas, especialmente a previdenciária e a tributária. Seria outro caso de "absolvido" pelo eleitorado. Mas como esquecer tudo o que aconteceu e partir para um grande acordo nacional, se se considera que o jogo democrático está em risco com um governo que age e acoberta esse tipo de corrupção? Lula disse ontem que não é possível levar-se indefinidamente a disputa política, coisa que o PT fez nos oito anos em que esteve na oposição. A alternativa ao cenário de acordo nacional é um governo populista, que tentará um contato direto com o povo e com os movimentos sociais, acuado por uma oposição ferrenha. Façam o jogo, senhores. |
Entrevista:O Estado inteligente
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