Entrevista:O Estado inteligente

sábado, agosto 12, 2006

Reféns do assistencialismo

VEJA

Apesar de seu tremendo impacto,
o Bolsa Família falha ao não abrir
uma porta de saída da miséria


Alexandre Oltramari, de Serrano do Maranhão

 

Anderson Schneider

DRAMA QUE NÃO ACABA
Multidão espera para receber o benefício no Maranhão: é preciso muito mais para que a esmola um dia tenha fim



Serrano do Maranhão, município situado a 200 quilômetros da capital São Luís, tem apenas uma rua asfaltada. Sua frota, excluindo jumentos e veículos movidos a tração animal, é de apenas doze automóveis. A cidade conta com um médico, uma farmácia, três pequenos mercados, cinco escolas – e um recorde curiosíssimo. Serrano do Maranhão é o município nordestino com o maior porcentual da população registrado no Bolsa Família, o programa que distribui dinheiro dos brasileiros que trabalham e pagam impostos a 44 milhões de outros brasileiros. São 6.910 beneficiários. Não se sabe quanto da população isso significa, até porque, segundo o último censo, havia menos de 5.000 habitantes na cidade. É certo que quase 100% dos moradores do vilarejo estão no programa. Serrano do Maranhão é a prova viva do impacto monumental que o dinheiro dos brasileiros que trabalham e pagam impostos tem na vida de quem recebe a ajuda. A capital nordestina do Bolsa Família é também um exemplo lapidar de como o programa transforma seus beneficiários em reféns do assistencialismo – uma armadilha que, tal como uma esmola, não lhes abre caminho para um futuro autônomo.

Há quase três anos os moradores de Serrano do Maranhão recebem o dinheiro enviado pelos brasileiros que trabalham e pagam impostos. Ao todo são 150.000 reais que pingam todo mês no município. Eles equivalem quase à metade do orçamento mensal da prefeitura, praticamente a única empregadora da cidade. No comércio local, movido por mão-de-obra familiar, as vendas dobraram. O comerciante Luís Fernando Fróes, dono do maior mercado da cidade, é um observador privilegiado do fenômeno. É dentro de seu estabelecimento que o Bolsa Família é pago. É também ali que o dinheiro é gasto pelos assistidos. Com tanta gente recebendo e gastando, Fróes já ampliou seu negócio. O mercado, antes com 10 metros quadrados, agora tem 120. As vendas saltaram de 15.000 para 30.000 reais mensais. "O que as pessoas mais compram é comida", conta o comerciante. A dieta da família da lavradora Liedenis Costa Pinto, 40 anos, cinco filhos e 65 reais do Bolsa Família, era à base de farinha. Com o dinheiro enviado pelos brasileiros que trabalham e pagam impostos, ela passou a comprar arroz e, uma vez por semana, serve carne para os filhos. "Nem vem 1 real para casa. Fica tudo no mercado do Fróes", diz.

Como o sucesso de um programa social não se mede pelo número de beneficiados que ingressam nele, mas pela quantidade que sai, a pergunta é: o Bolsa Família proporciona um caminho para a vida autônoma ou opera mesmo como um soro na veia econômica das cidades pobres porque as mantém vivas, mas não as liberta do ciclo miséria–assistência? "O dinheiro ajuda, mas não tem perspectiva para ninguém aqui", constata Maria Pereira da Graça, diretora da maior escola da cidade, com 300 alunos. "Sem outros investimentos, como cursos de capacitação profissional, não tem saída", diz ela. A prefeitura tem planos para implementar um programa chamado Costurando Cidadania e Confeccionando Oportunidades, cujo objetivo é ensinar técnicas de costura às mulheres de Serrano do Maranhão. Trata-se de uma iniciativa de uma distribuidora de máquinas de costura que seria implantada em contrapartida à compra de seus produtos pela prefeitura. Cada máquina é oferecida ao poder municipal por 7.000 reais. "Só com o Bolsa Família, ninguém aqui vai mudar de vida", comenta Antônio Carlos Pinheiro, secretário de Administração da cidade.

A educação básica, que poderia ajudar os assistidos a encontrar uma porta de saída do programa, é tratada com o descaso costumeiro na região. A inadequação do ensino é dramática. Que o diga a professora Nilcélia da Silva Capim, 38 anos, dois filhos, salário de 350 reais e Bolsa Família de 80. Seu caçula, Roberto, 10 anos, foi obrigado a repetir a 2ª série do ensino fundamental depois que a própria mãe interveio junto à escola. "Pedi para ele repetir o ano. Mesmo aprovado, ele não sabia ler uma palavra de duas sílabas", diz ela.

Serrano do Maranhão é uma amostra do que se passa em milhares de outras pequenas cidades pobres. Na semana passada, VEJA percorreu 1.200 quilômetros e visitou cinco municípios, entre o Maranhão e o Piauí. Encontrou situações parecidas em quase todos. Em Urbano Santos, localidade maranhense com 17.138 habitantes que ocupa a décima posição no ranking das cidades mais assistidas pelo Bolsa Família, também é escassa a esperança de que os beneficiados do programa possam desligar-se dele e prosseguir com as próprias pernas. "Do jeito que está, o programa não tira ninguém da miséria", diz a assistente social Silvania Coelho, responsável pela execução do Bolsa Família na cidade. Em Itapecuru Mirim, também no Maranhão, a principal atividade dos moradores é postar-se na fila do Bolsa Família. Na semana passada, cerca de 250 pessoas aguardavam pacientemente na principal rua da cidade para receber o benefício, que, prometido havia três dias, não tinha chegado ainda.

Uma notável exceção é a cidade de Pedro II, no Piauí, a 220 quilômetros da capital, Teresina. Ali, além de oferecer ensino fundamental adequado, a prefeitura já ministrou 25 cursos profissionalizantes nos últimos dois anos, alguns deles em parceria com o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae). Fundada há 150 anos, rica em opala e com uma recém-descoberta vocação para o turismo, Pedro II vem investindo na formação de artesãos, garçons e joalheiros – e abrindo, assim, uma porta de saída do Bolsa Família. "É um trabalho de longo prazo, mas que já está gerando renda e tornando as pessoas menos dependentes do dinheiro do governo", diz Marcos Mourão, secretário de Turismo da cidade. Um dos cursos de capacitação está ensinando técnicas de ourivesaria básica aos alunos. Osmarina Uchoa da Silva, 35 anos, dois filhos e Bolsa Família de 80 reais, é um deles. Para setembro, quando termina o curso, ela já tem uma promessa de emprego que lhe renderá 500 reais por mês – e significará o fim da dependência do programa federal. Pena que o exemplo de Pedro II seja uma exceção.

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