O Estado de São Paulo 27 de agosto de 2006
E por falar em palavras corrompidas, como “elite” e “ética”, nesta semana tivemos diversos atentados da elite contra a ética. Ou o ator Paulo Betti não é um membro da elite, no sentido de “privilegiado”? Ele, que parece ter voltado a ser petista depois de interregno tucano, citou Sartre nesta semana para justificar seu apoio a Lula, aquela batida fala de que para fazer política é preciso meter as mãos na merda. Primeiro, a fala é uma bobagem, até mesmo porque não serve nem para justificar que Sartre tenha se encantado com o maoísmo, uma das ideologias mais brutais e antiintelectuais do século 20. Segundo, fazer política, mesmo no mau sentido – digamos, omitir intenções ou estimular terceiros para obter vitórias mais adiante –, é uma coisa, roubar o dinheiro público é outra; Sartre, que eu saiba, não defendia a corrupção.
Outro membro da elite, o músico Wagner Tiso, repetiu o cineasta Fernando Meirelles e tantos outros e disse que fazer caixa 2 é praxe no Brasil, logo o PT não pode ser punido por isso. Foi essa ideologia que chamei de “todomundofazismo” – todo mundo faz, então tudo é permitido – que ajudou Lula a atravessar a crise do mensalão e hoje desfrutar da aprovação que só as grandes “vítimas” podem ter nas culturas populistas. Se os outros faziam, então o presidente eleito para combater a corrupção deveria, além de dar o exemplo, agir contra tamanha ilegalidade. E, se admitiu que seu partido fez – portanto, confessou que sabia de tudo, já que ainda não havia condenação judicial –, deveria ser punido ao menos pela conivência. Um ocupante de alto cargo público é responsável também pelo que se faz a seu redor e em seu nome.
O produtor Luiz Carlos Barreto, outro membro dessa elite artística acostumada a orbitar os núcleos de poder político, foi mais explícito: “Se o fim é nobre, os fins justificam os meios.” Quem determina se o fim é nobre? O comissariado? O que há de nobre na distribuição de verbas para aliados políticos por meios ilegais e oriundas de um sujeito cuja riqueza provém basicamente de licitações públicas? Será a permanência no poder do “carismático” Lula, do “guia espiritual” que ao chegar lá não cumpriu quase nada do que prometeu a vida toda? Barretão chegou a dizer que “mensalão é do jogo político, não é roubo”. Então não é roubo embolsar um dinheiro que não lhe pertence? Já os sanguessugas “deveriam ser fuzilados”, declarou em linguagem elegante. Incluindo os petistas? E qual a diferença?
O quarto exemplo, entre tantos possíveis, é Marilena Chaui, professora da USP, tão elitista que publica um volume sobre Spinoza acompanhado de outro só com as notas de rodapé. Em ocasião anterior, ela declarou que não lia jornais e que ficaria em silêncio sobre o governo atual, mas depois rompeu o silêncio e disse não estar “convencida da dimensão da crise”. Como poderia, se não lê jornais? Agora ela disse antes de mais uma palestra sobre Spinoza que por ela seria possível descobrir por que vai votar em Lula. Só sei uma coisa: Spinoza jamais votaria em Lula. Ele detestava orgulho, tagarelice, ignorância e passionalismo. Defendia a virtude, dizia que a compreensão racional é a fonte da liberdade, condenava a ambição de poder. Odiaria o governo Lula.
É claro que não é só na chamada “esquerda” que as palavras são corrompidas e os poderosos bajulados. A “direita” não fica atrás, e basta lembrar a babação em torno da suposta modernidade de Collor – que fez discursos escritos por José Guilherme Merquior – ou FHC. Quando um Wilson Martins escreve que “os espíritos liberais são autoritários por temperamento”, confundindo liberais com socialistas, fica claro que nem a etimologia merece seu respeito. É raro encontrar um intelectual ou artista brasileiro que realmente cultua a liberdade e não se deixa cegar pela ideologia. O próprio governo do PT é uma prova: seu problema não são os slogans pseudomarxistas, mas o fato de que age exatamente como os outros, confundindo público e privado e aumentando o peso do Estado sobre as costas da sociedade. Sérgio Buarque de Holanda, e não seu filho Chico, continua a explicar a mentalidade personalista do Brasil como ninguém. Não precisamos optar entre Chaui e Merquior.
“A elite econômica não quer assumir seu papel de elite cultural”, disse outro dia o educador Júlio Groppa Aquino. Ele quis dizer que as pessoas que tiveram oportunidades econômicas não assumem sua responsabilidade de preservar valores, debater idéias e distribuir conhecimento. Nossa “intelligentsia” é o melhor sintoma. Só quer saber de suas benesses e patotas, jamais de independência intelectual. Sofre, por sinal, dos mesmos males dos comentaristas esportivos: é bairrista (se o autor de uma obra é paulista ou carioca ou qualquer coisa, esse será o problema central dela), reducionista (jornalistas são superficiais, acadêmicos são ilegíveis, etc.), romântica (ou nostálgica)... Mas é pior: transforma tudo em questão política, em FlaFlu partidário. E termina sempre na cartola do poder.
RODAPÉ
Dois intelectuais argentinos que dão banho de humanismo são Alberto Manguel, 58 anos, autor de A Biblioteca à Noite, e Ricardo Piglia, 66 anos, autor de O Último Leitor (ambos Companhia das Letras). O gênero “ensaio sobre leitura” vem crescendo nos últimos tempos, talvez porque ela precise ser redescoberta, e os dois o praticam com muita perspicácia. Manguel parte de seu gosto pela leitura noturna, comenta as dificuldades de organizar uma biblioteca, descreve as estantes de escritores como Kipling ou Dickens e nota, borgianamente, que a “enciclopédia universal” é o próprio mundo, irredutível a uma ordem perfeita. Piglia também analisa o hiato estimulante entre leitura e experiência, nota o uso do discurso indireto livre por Kafka, traça a origem do comportamento de Che Guevara em sua paixão por autores como Jack London, diz que em Joyce o leitor é feito narrador. Acho que há mais brigas silenciosas nas bibliotecas do que eles examinam, mas me pergunto quais ensaístas brasileiros combinariam leveza e erudição dessa forma.
DE LA MUSIQUE
Estar no show em homenagem a Baden Powell no Sesc Pompéia, no sábado retrasado, é que foi um privilégio. O violão brasileiro é dividido em a.B. e d.B. (antes de Baden e depois de Baden) e, como disse Fernando Melo, do Duofel, sua mão direita era como a de Muhammad Ali, única. O Duofel comandou e fez muitos arranjos do show; a interpretação de Deixa, com a voz de Dalila Couti, eles deveriam entrar em estúdio para gravar imediatamente. Teve Quarteto Maogani, Chico Pinheiro (que acompanhou belamente Paula Morelenbaum em Berimbau), Paulo César Pinheiro, o filho de Baden, Marcel, e o genial Yamandú Costa. A música instrumental brasileira vai muito bem, obrigado, e a imprensa tinha de lhe dar mais espaço.
O MUNDO É UM TEATRO
Depois de esperar várias semanas, consegui ver na Faap, em sala com apenas meia ocupação, Ricardo III, de Shakespeare, na montagem de Jô Soares, que adaptou, traduziu e dirigiu a peça com eficiência. Marco Ricca é talentoso e começa bem, mas a partir de certa altura mostra que se bastou demais nos trejeitos – pegando nos outros como verme viscoso, coçando a careca como cão sarnento – e deixa de soar desagradável como deveria. Em parte, isso é causado pela necessidade que o espetáculo tem de não cair na paralisia; o tom muito coloquial ou atualizado de algumas passagens, a movimentação cinematográfica pelas passarelas e o uso da trilha sonora pareciam querer demais facilitar a vida da platéia. Houve cenas soturnas que até provocaram risadas em alguns espectadores. A tragédia se esvaziou.
GERMANIA
A confissão de Günter Grass, a uma quinzena de lançar autobiografia, de que participou das Waffen-SS, tropas de elite nazistas, no final da Segunda Guerra, chocou não só por si mesma, mas também porque ele ocultou o fato durante 60 anos – nos quais escreveu grandes romances contra o autoritarismo como Anos de Cão e O Tambor e se arvorou em reserva moral da nação, sempre pronto a cobrar a verdade histórica. Isso mostra o peso da sombra nazista, que alguns tentam apagar como “desvio do passado” igual ao de outros países.
POR QUE NÃO ME UFANO
É curioso como se tenta desqualificar o argumento de uma pessoa se ela não tiver solução prática alternativa à que critica. Defensores da invasão do Iraque pelos EUA e do bombardeio do Líbano por Israel costumam agir assim. É como se o desmantelamento de grupos terroristas só pudesse ser feito com a guerra entre nações (com exceção do caso Taleban, que ocupava a máquina pública do Afeganistão), não com uma mescla de pressão e repressão, movida até pela ameaça de um arsenal militar muito superior. Incitar a espiral de ódio, dar pretexto para que milícias radicais ganhem simpatia da maioria civil, só atrapalha. E isso não significa, como também costumam contra-argumentar, que a ênfase esteja na crítica aos EUA e Israel. Não; países como Irã e Síria são os grandes problemas da atualidade, tanto é que ninguém é louco de declarar guerra a eles. Inteligência pede foco.
Entrevista:O Estado inteligente
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