Desde a sua criação, em 1991, o Mercosul tem sido o foco da política externa. Mas qual Mercosul? O que dá marcha à ré em direção a formas variadas de protecionismo ou o que se propõe a avançar para novas etapas de integração? O Mercosul dos quatro, dos cinco, dos seis ou, agora, dos oito? O Mercosul que deseja o livre-comércio no Hemisfério ou o que rejeita liminarmente um acordo com os Estados Unidos? O que promove objetivos políticos comuns ou o que está dividido em relação aos caminhos a seguir? O que é fiel à sua cláusula democrática ou o que sugere o ingresso de um país que só conhece um primeiro-ministro, há 47 anos?
O Mercosul passa pela crise mais profunda desde a sua fundação. Não se trata apenas da proliferação de contenciosos comerciais e de diferenças políticas tópicas. Trata-se da falta de uma visão compartilhada e de uma crise de identidade, acentuada pelo ingresso, de modo insólito, da Venezuela. Se perguntarmos a cada um dos seus membros o que espera da integração, receberemos respostas divergentes, se não antagônicas. A solução não pode estar em artifícios ou concessões para manter juntos países que aparentemente desejam caminhar separados. Está em recolocar as questões fundamentais que deram origem ao processo de integração regional e tirar as suas conseqüências necessárias. Queremos ser uma zona de livre-comércio ou uma união aduaneira? Desejamos promover uma visão política comum de nossa região e sobre os tópicos centrais da agenda internacional ou preservar a liberdade para iniciativas unilaterais?
Na forma, somos uma área de livre-comércio. Na realidade, mantemos um número substancial de exceções ao livre intercâmbio. Mais do que isso, a Argentina introduziu recentemente um número crescente de restrições às exportações de produtos originários do Mercosul, além de recorrer a uma utilização abusiva de medidas de defesa comercial. Na letra dos tratados, somos igualmente uma união aduaneira. Na prática, preservamos setores inteiros - como os de bens de capital e de informática - num processo de convergência que nunca se completa, enquanto um importante segmento produtivo, a indústria automobilística, continua subordinado a um regime de comércio administrado, concebido como transitório, mas que se vai tornando definitivo. O açúcar jamais foi incorporado ao Mercosul. O resultado é que o emprego do etanol, a nova commodity energética do século 21, não está sendo compartilhado entre os membros do acordo sub-regional. Como se não bastasse, Brasil e Argentina acabam de adotar, sob o eufemismo de Mecanismo de Adaptação Competitiva (MAC), uma cláusula de salvaguarda, instrumento incompatível com uma união aduaneira, além de formalmente questionável, porque introduzido mediante uma resolução da Aladi.
Se quisermos ser efetivamente uma zona de livre-comércio, precisamos adotar um cronograma para eliminar suas exceções. Se quisermos ser uma união aduaneira, é necessário estabelecer metas para a conclusão do processo de convergência e para a incorporação à Taxa Externa Comum (TEC) dos setores que ainda estão fora. Se quisermos aprofundar uma visão política comum, será preciso coordenar posições nos temas de interesse regional e nos itens prioritários da agenda mundial. Não parece razoável, nem coerente com o objetivo de uma sintonia política, que o Brasil lance sua candidatura ao Conselho de Segurança da ONU sem consulta à Argentina, nem que promova uma candidatura própria à OMC apenas para afastar a do Uruguai.
Para avançar o Mercosul precisa de mais, e não menos competição. A tese de que a concorrência não é possível onde existem assimetrias entre as economias não tem fundamento. Se assim fosse, Portugal e Espanha não teriam experimentado o êxito que alcançaram em sua adesão à União Européia. Os países da América Central e do Caribe não buscariam, como fizeram, uma integração no âmbito da Alca. Nem faria sentido que Peru e Colômbia, assim como Paraguai e Uruguai, considerem de seu interesse um acordo de comércio com os Estados Unidos.
Se assimetrias existem, o que é fato, o caminho não deve estar na proteção, mas em reduzir os custos da transição para as economias mais vulneráveis e buscar os instrumentos que promovam a competitividade. O receituário é conhecido, mas tem sido olvidado na prática:
O Brasil precisa eliminar as restrições que ainda mantém às importações provenientes de seus vizinhos menores, o Paraguai e o Uruguai;
o programa de trabalho para 2004-2006 preconiza, entre outras medidas corretas, a criação de foros de competitividade, instrumento apropriado para transformar em cooperação e complementaridade o que hoje é fonte de contenciosos. Entretanto, apenas um deles, o de madeira e móveis, foi criado;
os fundos estruturais constituíram mecanismo eficiente para o avanço da União Européia. O Mercosul criou apenas recentemente um Fundo de Convergência Estrutural (Focem), o que é um fato positivo. Mas seus objetivos são pouco claros e seus recursos, limitados;
por fim, em vez de recorrentes intervenções sobre o intercâmbio, seria preciso promover uma aproximação entre as instâncias representativas do setor privado e estimular parcerias empresariais, pois somente elas criam a solidariedade de interesses, que é o fundamento da integração.
Se o Mercosul conta com inquestionável respaldo nos meios políticos, precisa consolidar o seu enraizamento na sociedade. O processo de integração tem sua origem numa iniciativa político-diplomática. Expandiu-se em seguida pela ação determinada das chancelarias. É hora de abrir o Mercosul para as sociedades nacionais. Incorporar um maior número de agentes econômicos e atores sociais ao processo de integração, construir uma visão e projetos nacionais compartilhados.