Marley & Eu toca na veia sentimental
de todos os que já tiveram um cão
– ou outro bicho de estimação
Jerônimo Teixeira
Divulgação |
Marley: almofadas destruídas e ouro devorado |
Há mais de quarenta semanas na lista dos mais vendidos de não-ficção do The New York Times – na qual ocupava a primeira colocação na semana passada –, Marley & Eu (tradução de Thereza Christina Rocque da Motta e Elvira Serapicos; Prestígio; 272 páginas; 34,90 reais), do jornalista americano John Grogan, é um daqueles sucessos que parecem desafiar toda compreensão. Trata-se de uma crônica da convivência do autor com seu cachorro trapalhão e hiperativo, o Marley do título. Com exceção de uns poucos episódios mais pitorescos (como o fracasso do indisciplinado Marley em uma participação no cinema), é uma história bem comum, sem nada de extraordinário: um casal sem filhos adota um cachorro; o cachorro, como muitos de sua espécie, bagunça a casa toda; o casal ganha três filhos e muda de cidade; o cachorro envelhece e morre; a família fica triste. Em teoria, qualquer dono de cachorro poderia ter produzido uma narrativa similar. Sim, mas foi Grogan quem teve a idéia de fazê-lo. E com isso acertou na veia sentimental de todos os que amam cachorros – um público nada desprezível, a julgar pelo 1,8 milhão de exemplares que o livro vendeu nos Estados Unidos. Marley, o labrador, merece esse sucesso póstumo: ele é a prova de que o maior encanto de um cão está na sua personalidade.
Não, falar em personalidade canina não constitui o pecado fabuloso da antropomorfização. Não se estão projetando atributos humanos sobre o bicho. Os especialistas em psicologia animal trabalham com parâmetros razoavelmente claros para definir a personalidade dos cães. De cinco fatores utilizados na avaliação da personalidade humana, quatro são válidos para o cão (veja o quadro abaixo). O único que não se aplica é a responsabilidade – noção que implica compromissos com o futuro e portanto não vigora no universo imediatista da cachorrada. As diferentes raças têm características específicas. Inteligência e afetividade, por exemplo, são próprias de labradores como Marley. Ao mesmo tempo, porém, cada cachorro guarda seus atributos individuais, que podem ser avaliados na hora de comprar um filhote. Grogan e sua mulher, a também jornalista Jenny, negligenciaram um dado importante ao comprar o pequeno Marley em uma fazenda nos arredores de West Palm Beach, no início dos anos 90: não pediram para conhecer o pai do cãozinho. Foi só depois de já ter fechado negócio com a criadora que o casal viu, por acaso, o pai cachorro voltando para casa em desabalada carreira, agitado e todo sujo depois de um dia de diversão nos pântanos da região. A resistência de Marley ao adestramento deve ter sido herança paterna.
John Grogan e sua nova cachorra, Gracie: amizade incondicional |
Marley & Eu é leitura leve e rápida, sob medida para a beira da piscina. A única dificuldade que ele oferece ao leitor – no Brasil – é a tradução obtusa. As tradutoras chegam a transformar "lab puppies" em "filhotes de laboratório". "Lab", aqui, quer dizer muito obviamente "labrador", a raça de Marley. Tamanho desprezo pelo contexto parece sugerir um despropósito lógico: as tradutoras não estavam lendo aquilo que traduziam. Uma pena, porque teriam se divertido com as peripécias de Marley. Em seus 13 anos de vida, o herói do livro arranhou portas, rasgou almofadas e roubou comida dos donos. Chegou a engolir uma corrente de ouro de Jenny (que o dedicado marido recuperou, imagine o leitor como). No entanto, Grogan e Jenny – e, mais tarde, seus três filhos – se apaixonaram pelo labrador. Há um encanto simplório mas irresistível nessa amizade. Lá pelo final, o autor tenta extrair uma "lição de vida" de sua relação com Marley. O cão era capaz de encontrar a máxima felicidade buscando um pedaço de pau atirado pelo dono – uma prova de que a felicidade estaria nas coisas simples. Comparação furada: seres humanos não são criaturas tão simples. Os bichos de estimação talvez tenham pouco a ensinar aos homens. Marley & Eu demonstra sobejamente, isso sim, que eles têm muito a dar.
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Rabo destruidor
"Marley estava crescendo a uma velocidade assustadora. Seu rabinho de filhote estava se tornando grosso e poderoso. Todos os objetos da altura do joelho para baixo foram derrubados pela arma louca e balançante de Marley. (...) Marley não sacudia o seu rabo. Ele sacudia o corpo todo. E em nenhum momento ele se sacudia mais do que quando tinha alguma coisa em sua boca. Sua reação em qualquer situação era a mesma: agarrar o sapato, travesseiro ou lápis mais próximo e sair correndo com ele. Uma voz em sua cabeça deveria lhe sussurrar: 'Pegue isto! Babe bastante em cima dele! Agora, saia correndo!'"
Trecho de Marley & Eu