Entrevista:O Estado inteligente

sábado, maio 13, 2006

Zuenir Ventura Freud explica. Explica?

O GLOBO
Freud explica. Explica?

Ese Freud voltasse à Terra agora, um século e meio depois de seu nascimento que se comemora este mês, o que diria do mal-estar moderno e das patologias coletivas de nosso tempo? Se viesse ao Brasil, como analisaria a relação de insistente fidelidade do povo com Lula e deste com Evo Morales? Como explicaria o comportamento de Silvio Pereira na CPI dos Bingos carregando todos os clichês da vulgata psicanalítica: rejeição, recalque, carência, mecanismos de defesa? O médico vienense que virou o homem pelo avesso, revelando suas zonas de sombra, seria capaz de explicar o que a sociologia não consegue: que país é esse?

A velha piada diz que Freud morreu — Deus e Marx também, e eu mesmo não estou me sentindo bem. Mas a julgar pelo interesse dos que o procuram, ele continua vivo. No Google há 22.600.000 entradas com seu nome, um pouco menos que Cristo ( 23.700.000), ainda que bem atrás de Deus (34.500.000), mas tendo à frente a perder de vista Marx, com o estarrecedor número de 47.800.000 buscas. Isso com o comunismo morto. Pode? Só Freud explica.

Lá pelos anos 60/70 houve uma grande voga da prática psicanalítica. Para qualquer atitude meio extravagante se dizia "Freud explica". A expressão e o verbo "assumir" justificavam qualquer má conduta, inclusive as pequenas e grandes patifarias: "Fulano é mau caráter. Mas ele se assume." Era uma atenuante que redimia todos os pecados. Acho que nenhum outro pensador conseguiu popularizar tanto seus conceitos e idéias. Categorias como libido, pulsão, id, ego e superego, instinto de vida e de morte, complexo de Édipo passaram a freqüentar a literatura, as novelas e até as mesas de bar.

Um autor hoje esquecido — o então best-seller Erich Fromm, de "Meu encontro com Marx e Freud" — achava que "esses dois gigantes do pensamento" iriam fazer o homem romper com as "cadeias da ilusão". Ele citava o pai da psicanálise — "Nossa ciência não é uma ilusão (...). Onde houver id haverá ego" — e o criador do marxismo — "A exigência de abandonar as ilusões sobre sua condição é a exigência de abandonar uma condição que necessita de ilusões". Fascinado pelos dois, Fromm tentou um casamento que também se revelou ilusório. Ninguém espalhou mais ilusão do que Marx.

Hoje, no "mercado de angústias", a psicanálise cedeu lugar à auto-ajuda, com magos e gurus em palestras e milhares de livros prometendo resultados mágicos e instantâneos para as neuroses individuais e as da civilização. Jornais e revistas tiveram que criar uma lista especial para os mais vendidos do gênero. Em tempos apocalípticos, parece que em vez de cura as pessoas passaram a buscar salvação.

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