Entrevista:O Estado inteligente

terça-feira, maio 16, 2006

Novo Dossiê Cayman? A farsa no país de Lula e Marcola Por Reinaldo Azevedo

PRIMEIRA LEITURA


A desculpa do PT já teve a senha de acesso divulgada na coluna de Clóvis Rossi na Folha deste domingo: as supostas contas secretas de petistas no exterior seriam um novo Dossiê Cayman, aquela farsa montada contra os tucanos. O petismo não consegue deixar de roubar — nem que seja a história alheia. É uma compulsão vivida como síndrome. Outros jornalistas já entraram na onda: não por acaso, gente que compôs a frente ampla que ajudou a eleger Lula em 2002 e que pretende vê-lo reeleito em 2006.

O PT decidiu reduzir a matéria publicada pela Veja e a entrevista concedida por Daniel Dantas a Diogo Mainardi a uma hipótese sobre a existência de contas em paraíso fiscal. Ora, isso, agora, é o de menos. Até porque, convenhamos: coisas assim jamais se comprovam preto no branco, como Paulo Maluf bem sabe. Verdadeiras ou falsas, elas jamais aparecerão. O que Veja publica agora é o segundo capítulo do caso Kroll, noticiado antes pela Folha: a espionagem que a empresa fez, segundo apurou então o jornal, a mando de Daniel Dantas. Ocorre que, desta feita, o centro da reportagem e da entrevista é outro.

E está no pagamento de alguns milhões a pessoas próximas ao presidente da República porque, vejam só!, o governo estava se metendo numa disputa entre empresas privadas e fabricando ganhadores e perdedores. E isso é crime. E o fez, diz Dantas, não sem achacar um dos lados. Ou então que se expliquem de um modo razoável os pagamentos feitos, segundo a revista, a Roberto Teixeira, cumpádi de Lula, e ao tal Kakay, advogado e amigo pessoal de José Dirceu: respectivamente, R$ 1 milhão e R$ 8 milhões. Punível com a pena de impeachment: o presidente teria se metido pessoalmente na porfia. Essas pressões todas foram denunciadas por Dantas no processo que ele move contra o Citi em Nova York.

E o chefão do Opportunity não poderia ser mais explícito: diz que Delúbio Soares pediu ao grupo a bagatela de US$ 50 milhões, que o banqueiro jura não terem sido pagos. Mainardi, em sua coluna, sustenta que Dantas cedeu aos achacadores. Na entrevista concedida por ele à Folha, mais relevante do que o desmentido de que tenha a lista de contas dos petistas no exterior é o fato de que ele reitera a acusação do achaque.

Bem instruído, Dantas disse a Mainardi que a ação de Delúbio estava caracterizada no artigo 316 do Código Penal — ou seja: concussão. Dantas se quer vítima do PT. No caso em particular, até acredito que tenha sido mesmo assim. E é também isso o que ele acusa no processo de Nova York.

Releiam o que Veja publicou. Mesmo sem as contas secretas, já se tem ali nitroglicerina pura. Parece-me que o principal destaque — e a capa mais justa da edição — era mesmo a entrevista de Dantas a Mainardi. Estava tudo dito ali, em tão poucas palavras. Aí, sim: ao principal, soma-se a penca de evidências de pagamentos suspeitos.

É claro que, numa democracia saudável, nada impede que a Justiça e o Ministério Público requisitem os números das contas para verificar se as suspeitas procedem ou não. A própria revista se mostra disposta a cedê-los. E nem era obrigada a tanto, uma vez que se inscreve no chamado direito ao sigilo da fonte. O caso só não será investigado se os órgãos do Estado — e não do governo — aos quais cabe fazê-lo decidirem não se mexer.

A estratégia de defesa do partido já está delineada: é tudo mentira; faltam as provas; também os tucanos sofreram antes agressão parecida... E há motivos de preocupação: leio jornais, sites, blogs e colunas, e parece que o jornalismo caiu nessa conversa — em alguns casos, não é engano, mas cálculo. Aprenda, leitor, a se defender da empulhação: jornalistas e comentaristas que se ativerem a essa questão da inexistência de provas das contas no exterior, querendo ou não, estarão fazendo o jogo do petismo.

A tarefa do jornalismo dito investigativo, agora, é correr atrás do processo que o Opportunity move contra o Citi em Nova York para conhecer os detalhes da acusação — que Dantas se diz impedido de revelar. Por que o Citi, subitamente, passou a ver em Dantas um inimigo? Ele se mostrava um mau gestor da Brasil Telecom, proporcionando um baixo retorno aos investidores? A Previ, que também dá as cartas na Vale do Rio Doce, foi peça-chave na destituição de Dantas do comando da BrT. O Citi teria recebido sinal de alguma alta autoridade brasileira, altíssima!, de que seus interesses na Vale também seriam prejudicados se o Opportunity não fosse defenestrado do comando da BrT. É isso o que importa.

É claro que temos de saber se as supostas contas de petistas no exterior existem ou não. Mas esse caminho, dadas as urgências, me parece bem mais longo do que aquele que leva à evidência de que o governo, extrapolando de suas funções e em associação com um partido, meteu-se numa disputa de empresas privadas. O que interessa é saber se Lula participou ou não da pressão contra Dantas; se Delúbio pediu ou não os US$ 50 milhões e em que circunstâncias os amigos de Lula receberam do Opportunity o riquíssimo leite de pata.

Em suma: ainda que as contas de petistas no exterior não passassem de uma invenção, a exemplo do Dossiê Cayman, não se trata, é claro, de um caso similar. Seria apenas uma ocorrência interessante em que uma ficção eventualmente dolosa encobriria uma montanha de crimes reais.

Oposições
Perguntei, na edição passada, onde andavam as oposições. Bem, dado o que li ao longo do domingo e desta segunda, parece que estavam comendo a macarronada do Dia das Mães. É justo! Conforta saber que político também tem mãe... Não há nada mais desastroso nessa profissão do que excesso de apetite por comida e a falta de apetite pelo poder.

Reluto, mas ainda chegarei à conclusão de que temos um governo realmente à altura da oposição. O Brasil acabou. A impressão que tenho é que só o PT e o PCC têm planos para o Brasil. Estamos entregues a Lula e a Marcola.

Craniotomia
O doente é um corpo discursivo, e a doença é uma doxa. Santo Deus! Parece estruturalista francês. Descobri que não domino o arsenal retórico com que dar substância ao primeiro e que, em relação à segunda, prefiro o paradoxo.

É claro que a ocorrência de dois tumores benignos no cocuruto de uma pessoa saudável (há um terceiro, mas decidimos ignorá-lo por enquanto) — a despeito dos meus ataques especulativos contra a minha higidez: cigarro, café, sedentarismo e impaciência com a burrice — pode ser menos perigosa do que uma gripe em alguém em avançado estado de morbidez.

De todo modo, havia e há uma lista de prescrições que eu deveria seguir. É o discurso decoroso, compatível com quem passou a ter, como os bebês, moleira: eles, apenas uma; eu, duas. O mais chato são os pontos: repuxam, coçam, doem um pouco, em meio a uma sensação de dormência que toma todo o couro que já foi cabeludo um dia.

Esforço-me para ser disciplinado, mas estou longe de ser um exemplo retórico para os pacientes de craniotomia, unha encravada ou defluxo. Há quem verdadeiramente domine a arte de ficar doente, mal disfarçando o prazer que sente na morbidez, entregando-se à vontade ou aos serviços de terceiros. Não é o meu caso. Não que eu não goste de café na cama. Até prefiro. Desde que fique claro que, se eu quiser, levanto e pego eu mesmo, e sem sofrimento, o que me faz feliz.

A mordomia e a vagabundagem só são virtuosas se você delas usufrui por diletantismo. Caso contrário, prefira a dor inexorável a depender da boa vontade ainda que de serviçais com carteira assinada. É o que distingue, como direi?, a vocação aristocrática — aristocracia do espírito, leitor amigo! — da preguiça pequeno-burguesa. Gosto é de ser servido quando não preciso.

De todo modo, ando mais comportado, é claro, embora não exemplar. Numa reação algo neurótica, rejeito a doce oferta dos meus colegas de Primeira Leitura para que me resguarde. E escrevo, se disposto, ao menos este A Parte e O Todo. Eles pretendem que eu me poupe ainda mais do que venho fazendo; os médicos recomendaram o mesmo. Segundo os termos aqui empregados, não escrever seria mais decoroso para a retórica da doença. Escolhi a transgressão.

Era fatal, nestes dias, especialmente aqueles que antecederam a cirurgia, quando tudo o mais era escuro mesmo para os médicos, que me viessem à memória os últimos dias de meu pai, de quem nunca se ouviu, nem eu nem ninguém, um só gemido, embora tenha percorrido um caminho longo e difícil. Ele não agia daquele jeito por cálculo ou heroísmo. Parece que lhe herdei a falta de imaginação para ficar doente. E uma certa vergonha de encostar o corpo e pedir socorro.

Se estas palavras tivessem feito parte de seu vocabulário e se escrever tivesse sido seu ofício, ele certamente teria dito: "Entregar-se não é decoroso". Devemos no mínimo isto a nosso pai: decoro. Mesmo que seja no país de Lula e Marcola.

[reinaldo@primeiraleitura.com.br]
Publicado em 15 de maio de 2006.


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