Artigo - |
O Estado de S. Paulo |
17/5/2006 |
A tática terrorista de atacar os agentes da lei onde eles menos poderiam esperar (à mesa em suas casas ou namorando na rua) pode ser inusitada e até inédita. Mas a ofensiva do Primeiro Comando da Capital (PCC) promovendo atentados e patrocinando rebeliões nos presídios paulistas não deveria surpreender ninguém. Muito menos as autoridades encarregadas de reprimir o crime, que cometem o disparate de confessar estar informadas e, ainda assim, não deram sequer um alerta geral, última instância inteligente e responsável de quem deveria ao menos se preparar para reagir. Na verdade, a impotência da autoridade para enfrentar o desafio intolerável dos criminosos é mais uma falácia, uma espécie de salvo-conduto para fugir da responsabilidade pelos eventos. Ou, o que é ainda mais grave, transferi-la para o adversário, esperando furtar-lhe alguns votos. Pois, resultando da conveniência política de não agir, ela não se manifesta na impossibilidade de atuar, mas é conseqüência da soma perversa da incapacidade com o comodismo - o que chega a caracterizar uma certa cumplicidade. É isso aí! Não há mocinhos dignos nem heróis da Pátria nos bastidores deste bangue-bangue no qual a população ordeira e trabalhadora é encurralada no OK Corral de uma metrópole abandonada à própria sorte, sem transporte coletivo nem trânsito fluente (et pour cause) e, sobretudo, sem paz em casa, na rua ou no escritório. Mas apenas hordas de oportunistas - para dizer o mínimo - garimpando oportunidades de se dar bem, como se pertencessem ao ofício dos agentes funerários daquelas cidades sem lei do Velho Oeste americano. O governador Cláudio Lembo, com a razão perdida pela evidente ineficiência da política de segurança que herdou de Alckmin e Covas, calcanhar-de-aquiles de uma gestão estadual bem-sucedida em outros setores, e pela óbvia incompetência de seu secretário de Administração Penitenciária, Nagashi Furukawa, busca abrigo na culpa alheia. E reencontra a razão na constatação de que o governo federal reduziu drasticamente os gastos em segurança pública, não investindo na construção de prisões nem repassando recursos para que os Estados as construíssem. Incapaz de dar uma resposta convincente a essa crítica, o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, criminalista com notórias posições a favor do abrandamento das punições a condenados que cumprem pena no inferno prisional brasileiro, veio a público oferecer os préstimos da Polícia Federal (PF). Seria uma tática esperta de tergiversar, se não fosse apenas uma deslavada manifestação de cinismo. A PF tem protagonizado freqüentemente o noticiário, desempenhando o papel de instituição eficiente no combate ao crime do colarinho branco, atividade na qual a investigação não é tão complexa como parece e o risco de baixas de agentes é próximo de zero. Mas essa repartição burocrática da administração federal, sob as ordens do valoroso defensor de presos políticos à época da ditadura, não tem cumprido sua obrigação precípua de reprimir o tráfico de drogas, atividade que sustenta o crime organizado. Se, em vez de atender a consultas do marqueteiro Duda Mendonça, pilhado em contravenção penal, ou de apresentar colegas de peso ao ex-ministro Antonio Palocci para driblar as leis da República, Sua Excelência tivesse cobrado de seus subordinados com insígnia o cumprimento da própria obrigação, certamente os exércitos comandados pelos traficantes não ousariam tanto. É sabido que o ministro da Justiça abandonou uma banca próspera de advocacia para servir ao público no governo petista, mas nunca abdicou de suas arraigadas convicções contra os rigores a que são submetidos os apenados nas celas superlotadas. A vasta experiência de um causídico competente como ele seria de grande serventia para a sociedade, contudo, se estivesse a serviço de um mutirão de especialistas em Direito Criminal buscando uma execução penal que evitasse a transformação das celas em escritórios de planejamento de crimes de todos os tipos - entre os quais os atentados que têm posto em pânico a população de um Estado que é tido como a locomotiva do Brasil. A escalada de ousadia e brutalidade dos criminosos e a reação atarantada das autoridades em cujas mãos a sociedade deposita o exercício da força legítima para a manutenção da lei e da ordem estão a exigir dos gestores públicos brasileiros um espírito cívico que a política nacional já não conhece há muito tempo. A tragédia brasileira é que a vontade política que falta a governo e oposição para se unirem e, só assim, derrotarem os delinqüentes irmanados tem sido sinônima não da necessária união para modernizar as leis e limpar os aparelhos repressivos do Estado da corrupção deslavada, mas, sim, do voluntarismo ideológico farisaico. Nem depois de as quadrilhas de traficantes assumirem o controle territorial de várias favelas do Rio, nem depois da exibição da falta de limites e do poder de articulação dos líderes do PCC no clima de terror instaurado em São Paulo, a elite política dirigente deu uma trégua em sua luta pelo controle do Estado, sem pensar em torná-lo mais limpo, mais transparente e mais eficaz. A tragédia nacional é que esta Nação de 180 milhões de heróis anônimos e pobres, que lutam para viver honestamente, seja refém de criminosos inescrupulosos, de colarinho branco ou de metralhadora em punho. E não surge ninguém capaz de desempenhar tarefas óbvias - como impedir que os chefões presos mandem ordens a seus sequazes, seja pelo celular, seja em verdadeiras reuniões de diretoria com seus magotes de advogados nas visitas que recebem -, alegando a impotência não dos covardes, mas dos cúmplices. Vencer a guerra contra a insegurança pública depende menos de vontade política que de vergonha na cara. José Nêumanne, jornalista e escritor, é editorialista do Jornal da Tarde |
Entrevista:O Estado inteligente
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Não falta vontade, falta é vergonha José Nêumanne
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