O GLOBO
Cleptomania
O Brasil tem vivido um incessante bombardeio de novos casos de corrupção. Alguns são escatológicos: propinas carregadas nas cuecas. Pela freqüência dos casos, pela abrangência das denúncias, pela disseminação da prática, o país parece estar sofrendo um surto de cleptomania. Sanguessugas se espalham pelos negócios públicos. Precisa-se urgentemente de mecanismos de proteção contra esse mal.
Já escrevi aqui mais de uma vez: o Brasil não é o único, nem o último, a enfrentar uma onda de negócios escusos. Esse tem sido um mal que assola o mundo inteiro. Alguns países já desenvolveram mecanismos de proteção; outros ainda têm muito trabalho para aumentar o grau de transparência nos negócios públicos. O Brasil está neste segundo grupo. O fato de não ser o único a enfrentar uma onda de corrupção não atenua o crime dos corruptos, nem conforta os cidadãos. Tira talvez um pouco da vergonha extrema que o país sente diante do que vê diariamente. O olhar para fora deve servir para encontrar mecanismos de redução do problema.
A luta contra a corrupção tem mobilizado gente em todo o mundo, principalmente a partir dos anos 90. Na última "Foreign Affairs", dois estudiosos do tema escreveram um artigo sobre o que chamaram de "A longa luta contra a corrupção". Ben Heineman, membro do Belfer Center, da Kennedy School of Government, de Harvard e Fritz Heimann, co-fundador da Transparência Internacional, argumentam que a corrupção é ainda mais lesiva do que parece.
No passado, foi vista, dizem, como uma forma de contorno das distorções criadas por governos hiper-regulados; tolerada como um subproduto meio inevitável. Hoje essa interpretação está superada. "A corrupção distorce o mercado e a competição, alimenta o cinismo entre os cidadãos, mina o respeito à lei, fere a legitimidade do governo e corrói a integridade do setor privado", diz o artigo. A corrupção, afirmam, é contra o desenvolvimento, e as maiores vítimas são os pobres.
Mesmo sendo difícil contabilizar a corrupção global, há algumas tentativas. O Banco Mundial estimou em 2004 que funcionários públicos do mundo inteiro recebem por ano propinas no valor de US$ 1 trilhão. Um centro de estudos russo calculou no ano passado que o valor das propinas pagas no país pode chegar a US$ 300 bilhões anualmente. O relatório Paul Volcker, feito sobre o escândalo no programa petróleo por alimento das Nações Unidas, diz que havia 2 mil companhias no esquema.
Os especialistas fazem quatro recomendações para a luta contra a corrupção. Primeiro, fazer a lei ser cumprida através de investigação e punição da má conduta. Segundo, a criação de mecanismos de prevenção através, por exemplo, do aumento da transparência nos negócios públicos. Terceiro, reformas legais que institucionalizem o respeito às boas práticas. Por fim, a formação de valores na sociedade.
Como o problema é global e não apenas de um país, há iniciativas internacionais de unir países dentro do mesmo arcabouço legal de combate à corrupção. Os autores citam o caso da OCDE, que firmou contratos com os países membros. Se corruptos agem em rede e desenvolvem cada vez mais modernos esquemas de lavagem de dinheiro, pagamento de propina e falsificação de toda ordem, a anticorrupção precisa também de redes e regras. Países começam a cooperar entre si e a desenvolver a tecnologia para combater a corrupção.
Na semana passada, o Brasil viu novas e deprimentes cenas de corrupção. Um dos ex-poderosos do PT ofereceu ao país um espetáculo lamentável em todos os aspectos. Silvio Pereira fez de esquecido de declarações feitas dias atrás e foi ajudado pela falta de objetividade dos parlamentares naquelas intervenções mentalmente desgovernadas, feitas para favorecer quem pergunta e não a busca do esclarecimento. Um novo escândalo apareceu e a revelação dos detalhes mostra o mesmo enredo; as mesmas práticas.
A oposição tenta pegar o governo, o governo tenta salvar a pele do presidente de olho em mais quatro anos de poder; o eleitor vai sendo enrolado por meias verdades. Há momentos de resistência institucional, como a denúncia feita pelo procurador-geral da República, mas o fato é que o país parece estar sendo tragado por uma sucessão invencível de esquemas, negociatas e espertezas. A falência da Câmara dos Deputados como primeira instância de punição dos culpados agrava a sensação de impunidade que cerca o caso.
Se o resultado do mais amplo e grave caso de corrupção no Brasil for isto — três cassações na Câmara e muito falatório — haverá conseqüências perigosas. A agenda anticorrupção é ampla e complexa. Não é apenas a briga para saber quem vai ganhar a próxima eleição. Não é uma luta contra o presidente Lula. A corrupção é moralmente repugnante e inimiga de todos os avanços que a sociedade busca. A luta pela democracia marcou, com os valores da liberdade e do estado de direito, as gerações mais velhas do Brasil. As novas estão tendo seus valores minados pela falta de punição dos culpados, pelo descaramento, pela disseminação dos atos de corrupção no país. Como disse aqui: 43 milhões de eleitores têm 28 anos ou menos, ou seja, nasceram a partir do ano em que acabou o AI-5 no Brasil. Esta geração pode concluir que a democracia não vale o que custa. Se concluir, o país será terreno para qualquer aventura autoritária.
Entrevista:O Estado inteligente
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