O novo escândalo revelado pela Operação Sanguessuga mostrou a necessidade de moralizar o processo orçamentário, mas não dá para ter esperança na promessa do presidente do Senado, Renan Calheiros, de medidas para evitar a repetição dos malfeitos. O problema está na cultura política herdada de nossos antepassados portugueses. Por isso, dificilmente haverá bons resultados, a não ser que se adotem ações mais profundas, como as sugeridas no final deste artigo.
O Orçamento surgiu das lutas políticas que desaguaram na moderna democracia ocidental. Nos países de tradição anglo-saxônica, o processo derivou da necessidade de impor limites institucionais ao arbítrio dos reis absolutos. Na esteira de revoluções ou de ameaças de guerra civil, a sociedade conseguiu impor regras específicas aos governantes.
Um dos marcos desse processo foram as mudanças na Inglaterra do século 17, que transferiram ao Parlamento o poder de decidir sobre o gasto público. Pela Carta de Direitos de 1688, a despesa passou a depender de prévia autorização legislativa. O rei não mais podia fazer a guerra e ou despender como lhe parecesse conveniente. A Carta Magna de 1215 já havia estabelecido que nenhum tributo poderia ser cobrado sem a prévia concordância do Parlamento.
Essas bases culturais e institucionais foram absorvidas por colônias inglesas no Novo Mundo, mas não pela parte ibérica da Europa e das Américas. Aí está a razão por que os parlamentos dos primeiros países levam a sério o Orçamento, enquanto no Brasil e outros países latino-americanos a matéria vira ficção ou fonte de falcatruas e desperdícios. Com a entrada na União Européia, Portugal e Espanha fizeram avanços consideráveis nessa área.
Nos países anglo-saxônicos, o Orçamento representa uma proteção da cidadania contra o arbítrio dos governantes. Surgiu, como dito acima, para impor limites à vontade deles. Nos países ibéricos, o Orçamento serve para o exercício do poder e da distribuição de favores aos amigos do rei. Enquanto os cidadãos ingleses obtinham essa conquista, os reis ibéricos ainda juntavam os seus bens aos haveres do Tesouro, no conhecido patrimonialismo.
No Brasil, aceitamos que o Orçamento é "autorizativo", isto é, não existe como tal. O "rei" cumpre o que quiser. Como tenho mostrado neste espaço, não há justificativa histórica nem institucional para essa interpretação. Não existe norma, na Constituição ou nas leis, que lhe dê guarida, mas ela é conveniente para o Executivo, pois assim consegue podar as extravagâncias do Congresso, gastando apenas quanto lhe convém.
Desde a Constituição de 1988, o Congresso "reestima" a receita para abrigar o maior número de emendas, quase todas de natureza paroquial e muitas passíveis de gerar práticas corruptas como as constatadas pela Polícia Federal e no estarrecedor depoimento da assessora do ministro da Saúde (O Estado, 10/5/2006). Este ano, foram R$ 15 bilhões a mais de receitas. Cabe lembrar que os constituintes promoveram substancial transferência de recursos da União para os Estados e municípios, sob a justificativa de que poriam fim à romaria de prefeitos e governadores em busca de dinheiro federal. Não funcionou.
Muito terá de ser feito para moralizar o processo orçamentário e para mudar a cultura prevalecente na classe política e na opinião pública.
Quatro idéias poderiam ser consideradas.
Primeira, admitir que o Orçamento é mandatório, adotando-se medidas para evitar que essa boa norma se transforme em desastre fiscal.
Segunda, vedar emendas relativas a despesas da competência de Estados e municípios. Praças, coretos, asfaltamento de ruas, estádios, saúde, rodovias e outros não poderiam receber dotações da União.
Terceira, as emendas ao Orçamento só seriam admitidas quando de fato compatíveis com o Orçamento Plurianual de Investimentos da União.
Quarta, a estimativa da arrecadação deveria ser elaborada em conjunto por equipes técnicas dos poderes Executivo e Legislativo.
Se fossem adotadas, essas mudanças não garantiriam que a sociedade ficaria protegida contra o descaso e a má fé que têm imperado na aprovação do Orçamento pelo Congresso, mas seria um bom começo. Com o tempo, quem sabe teríamos uma peça orçamentária digna de um parlamento sério.
* Mailson da Nóbrega é ex-ministro da Fazenda e sócio da Tendências Consultoria Integrada (e-mail: mnobrega@tendencias.com.br