O GLOBO
Estilos de escritura têm a virtualidade de suscitar diferentes reações dos leitores. Um artigo analítico visa a encontrar eco na capacidade racional de entender, onde o conceito e a frieza primam sobre outras formas de compreensão. Não que o argumento não possa provocar reações apaixonadas, mas essas reações estão, ou deveriam estar, circunscritas pelos processos racionais do diálogo e do raciocínio. Um artigo irônico, por sua vez, trabalha com o limite do argumento, com seus efeitos paradoxais, podendo tanto suscitar o riso como a indignação, sem se preocupar com a sua coerência e a sua adequação aos fatos. As palavras são usadas ao arrepio da realidade, com o intuito de mostrar o absurdo desta realidade. A lógica é outra.
Ao escrever meu último artigo, "Nunca antes", coloquei-me claramente nesta segunda opção de escritura, pois as mentiras, a corrupção sistemática de uma "organização criminosa" e a falta completa de ética provocam tal indignação que a resposta também pode ser dada sob a forma da ironia. O que resta quando a realidade se mostra tão aterradora, exibindo o lamaçal em que afundou a política brasileira sob a égide do partido que se dizia o representante da "ética na política", senão apelar para um tipo de escritura que procura expor os aspectos dramáticos de uma "inusitada" situação?
Na escritura desse artigo, procurei realçar alguns tons que, de tão absurdos, não dariam lugar à incompreensão. Qual não foi a minha surpresa quando recebi um expressivo número de e-mails agressivos, criticando-me, precisamente, por defender o governo Lula. Palavras como "imbecil" não foram raras, e não foram das mais descorteses, dada a indignação provocada. Indignação comigo por supostamente defender um governo que é o verdadeiro alvo de tal indignação. A pergunta, no entanto, não deixou de martelar a minha cabeça: o que faz com que leitores inteligentes tenham perdido a capacidade de perceber a ironia?
O problema parece residir no tipo de realidade ao qual o artigo alude sob a forma do sarcasmo. Ou seja, os leitores e os cidadãos que acompanham esse desdobramento melancólico e farsante do atual governo e de seu partido não suportam mais tal situação, exacerbada ainda pelo fato de o presidente Lula poder ainda se reeleger, apesar de tudo que, em seu nome, foi feito. Neste sentido, as pessoas estariam perdendo a capacidade de rir, sobrando apenas a reação indignada e irada.
A realidade não tem nada de risível, e um artigo irônico procura precisamente suscitar uma outra forma de indignação, que tem na descontração um outro modo de comportamento. Chegamos a um grau extremo, onde a mentira, de tão deslavada, cessa de produzir efeitos, tal a forma reiterada de sua repetição. Precisamos aguardar a denúncia do procurador-geral da República para que viéssemos a falar de uma forma juridicamente fundada de uma "sofisticada organização criminosa". Precisamos aguardar a entrevista do ex-secretário geral do Partido, Silvio Pereira, concedida ao jornal O GLOBO, para que pudéssemos observar mais de perto um acerto de contas interior à própria "organização".
Como se não fosse o suficiente, os atuais membros do governo e do partido partiram para mentiras e desqualificações no melhor estilo stalinista. Uma das pérolas foi a de que o ex-todo poderoso dirigente, próximo de Lula e de José Dirceu, estaria emocionalmente desequilibrado, outra a de que estaria "espiritualmente atormentado". Outra ainda a de que mente, como se mentirosos contumazes tivessem qualquer dignidade para assim qualificar ex-amigos. O que gostariam de fazer? Mandá-lo a um hospital psiquiátrico especializado em tratamentos políticos de choque? A questão reside em que o "tormento" tomou conta de nossa realidade política, fazendo com que os critérios morais abandonassem essa arena. E as pessoas, com justa razão, têm cada vez menos paciência para lidarem com ela. Desculpem os meus leitores se dela me utilizei para suscitar um outro tipo de indignação, com o intuito de mostrar que o "Nunca antes" significava "Nunca mais" tal tipo de governo. Não me equivoquei, porém, na reação indignada, pois ela mostra perfeitamente que a própria realidade transbordou qualquer limite moral, e também jurídico e político.
DENIS LERRER ROSENFIELD é professor de filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Entrevista:O Estado inteligente
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