Escritores latinos provam que não é só o governo boliviano que sobe o tom contra o País
Antonio Gonçalves Filho
Numa de suas visitas ao Brasil para o lançamento de Dinheiro Queimado (Companhia das Letras, R$ 39,50), o escritor argentino Ricardo Piglia foi questionado pela professora mineira de Literatura, Maria Antonieta Pereira, por que razão os bandidos, em seu livro, procuram fugir para o Brasil. Piglia riu e respondeu: "Porque há outra língua, porque o país está na fronteira conosco e dá a sensação de ser outro mundo." A resposta não convenceu. Parecia civilizada demais. A professora queria saber por que, afinal, a literatura hispânica percebe o Brasil como o mais estrangeiro dos países do Cone Sul - e muitas vezes como um país imperialista. Piglia desconversou, mas sua amiga não desanimou. Insistiu em descobrir por que pequenas rivalidades presentes nas relações entre Brasil e Argentina aparecerem em contos como O Preço do Amor, de autoria do mesmo Piglia.
Nesse conto, o personagem Esteban acusa Adela de estar andando em companhia de um brasileiro "safado", cuja nacionalidade seria denunciada pelo jeito de andar na rua. Em outras palavras: o reconhecimento das diferenças regionais dava poucas esperanças para o sonho de integração latino-americana, de um continente a la Bolívar em que todos os países seriam unidos como irmãos siameses. "O Brasil configura o Oriente para a América espanhola, um lugar exótico, misterioso, talvez menos misterioso agora com o Mercosul, mas ainda assim uma representação do estrangeiro, não só pela língua como pelo fato de ter uma cultura carnavalizada, uma cultura mais parecida com a caribenha, por causa da afrodescendência", justifica a professora mineira de Teoria da Literatura da Universidade Federal de Minas Gerais.
Essa impressão é reforçada pelo livro que o colombiano Daniel Samper Pizano lança na sexta, Impávido Colosso. Nele, lá pelas tantas, o cínico protagonista Camacho, com a cabeça cheia de caipirinha e cercado de "negras deliciosas", tem uma revelação: Salvador é o Caribe, "embora se encontre a milhares de quilômetros de Cartagena das Índias, de Kingston ou de San Juan de Porto Rico".
Não é o que pensa o poeta uruguaio Roberto Echavarren. O Brasil não é um paraíso caribenho, mas um país de governantes irresponsáveis, acusa. "Lula lavou as mãos no conflito argentino-uruguaio das fábricas de papel na margem oriental do Rio da Plata e descuida de sócios pequenos como o Uruguai quando o assunto é Mercosul, o que explica a busca de um tratado uruguaio de livre comércio com os Estados Unidos ", diz o autor de Julián, el Diablo en el Pelo. Echavarren acha que a Bolívia está certa ao nacionalizar seus recursos de gás e petróleo e que o Brasil e Argentina devem pagar caro por isso. "A ditadura brasileira, afinal, foi a mamãe de todas as ditaduras latinas", lembra. "E os Estados Unidos foram o papai", conclui.
Nem todos são assim tão francos como o poeta uruguaio. A reportagem do Estado enviou mais de 20 mensagens eletrônicas a escritores latinos para saber se eles concordam ou não com essa posição. Autores como Eduardo Galeano (As Veias Abertas da América Latina, Paz e Terra, R$ 45) e Beatriz Sarlo (A Paixão e a Exceção, Companhia das Letras, R$ 44) pediram desculpas e preferiram ficar fora da discussão se o Brasil é imperialista ou mesmo um impedimento à união latino-americana. Compreensível. O mercado editorial brasileiro não é nada desprezível. Nenhum autor gostaria de parecer antipático a seus potenciais leitores. Contudo, numa entrevista recente, Galeano citou os brasileiros entre os povos latino-americanos que perderam sua fé na democracia, traçando um panorama pessimista para a América Latina, "hoje a região do mundo que menos acredita num sistema democrático", segundo ele.
O escritor Wilson Bueno, cujo Mar Paraguayo (escrito em portunhol) é mais cultuado em outros países da América Latina que no Brasil, entende que a rivalidade entre países do continente é apenas política. "Os escritores da América hispânica não vêem mais o Brasil como curiosidade exótico-folclórica, baiano-regionalista", diz. Bueno não se lembra de ter percebido, entre os autores hispano-americanos que leu, "alguma hostilidade tão ostensiva ou explícita com relação ao Brasil". Uma tirada, um chiste talvez, admite o autor.
Daniel Samper reforça a observação de Bueno logo no começo de Impávido Colosso, em que o protagonista Camacho faz uma crítica à língua falada pela interlocutora Regina, "que ela imaginava ser espanhol, mas se parecia de maneira muito suspeita com o português". O Brasil nunca foi perdoado por ter mandado às favas a partilha com as nações ibéricas e não falar a língua da América Latina.
Sobre a imagem do Brasil que apresenta no livro, Samper lembra que "a ditadura militar brasileira inaugurou a era dos regimes de segurança nacional, superada amplamente pela perversão das ditaduras argentinas e chilena". O colombiano diz que isso permitiu ao Brasil "permanecer na semi-obscuridade da história", mas não isento de culpa pela disseminação de regimes autoritários e repressores na América Latina. "A chegada de Lula ao poder, para quem, como nós, queríamos uma mudança social no continente, foi, então, uma grande notícia." Para Samper, a despeito da corrupção partidária, "Lula demonstrou capacidade de gestão". Mas não suficiente, ao que parece, para estabelecer sintonia com o que pensam os líderes dos países vizinhos.
Essa falta de conexão não é só política, como observa o colombiano Efraim Medina Reyes (Técnicas de Masturbação entre Batman e Robin, Planeta, R$ 36,90). O irreverente Efraim diz que sente "uma simpatia irredutível por Lula". Para o colombiano, "nós, latino-americanos, crescemos com a cultura do autodesprezo, a cultura de odiar o que realmente somos, mestiços, índios". Isso explicaria, de alguma forma, o preconceito da mídia contra o presidente da Bolívia Evo Morales. Mas não contra Chávez. Ele é a bola da vez no mercado editorial brasileiro. Sua biografia está no prelo, mas Efraim duvida que ele chegue a ser "líder de coisa alguma". E profetiza: o que deveremos ver nos próximos tempos é um eixo da insanidade sustentada a petróleo, representado pobremente por Venezuela e Bolívia, e um eixo dos países viáveis, organizado por Brasil, Colômbia, Chile, Argentina e Uruguai. Os demais irão se ordenar por um ou outro eixo. Ou irão se submeter aos Estados Unidos."
MINIENTREVISTA
DANIEL SAMPER PIZANO: ESCRITOR Entre os jornalistas convidados pela ditadura militar para visitar o Brasil em Impávido Colosso está um argentino que se parece muito com você, inquisidor, desconfiado. Como analisa hoje a situação do Brasil e o governo Lula?
Creio que a grande tarefa que tem a esquerda no nosso continente é demonstrrar que pode chegar ao poder e funcionar, governar, administrar. Lula demonstrou capacidade de gestão, contra a previsão de muitos, mas a corrupção partidária e a lentidão de certas mudanças estruturais produzem decepção e impaciencia. Contudo, co ntinuo acreditando que seguirá adiante e que Lula será bom para o Brasil e o continente.
Nixon disse que a América Latina iria onde o Brasil fosse, mas a Veneuzela parece estar à frente...
Não há dúvida de que Evo Morales alinhou-se á tendência chavista, que é bastante desordenada, e que Chávez - que tem petróleo e parece mais atraente para a mídia - vai ganhando palmo a palmo de Lula. Assim reconhece a revista Time ao incluir Chávez como único ibero-americano entre os 100 personagens mais influentes do mundo. No entanto, Fidel Castro sabe que tudo isso é, de alguma manera, um triunfo seu.
Millor Fernandes chama a atenção de Camacho em Impavido Colosso como o grande filósofo do Brasil. Quem são os outros?
Creio que uma das grandes tragédias sul-americanas é o desconhecimento do Brasil que existe entre vários de seus vizinhos. Millor é, para mim, um dos grandes humoristas do mundo, digno de ser mencionado ao lado de Woody Allen. Verissimo é outro autor extraordiário, um dos melhores humoristas do continente.
TRECHO
Considera-se um pecador, impávido colosso?
"O desconhecimento do Brasil por seus vizinhos é uma tragédia" Trecho - O sexto mandamento é claro que não violei - respondeu Carmelo, admirado de que a calça do pijama não houvesse chegado ao chão. - Pelo menos nesta viagem...
- Estou me referindo a pecados mais graves e que exigem menos esforço que o da fornicação, estimado militarista colombiano. Por exemplo, você não ficou cheio de inveja do milagre econômico dos seus vizinhos brasileiros? Não quis imitar, cheio de soberba, este grande país?
- Bem, admito que sim. Como você soube?
- Vejo isso no seu olhar concupiscente. Você sabe que a inveja, a soberba e a luxúria são pecados capitais?
- Rapaz, já ouvi dizer algo assim.
Aguiar tomou um gole do seu copo.
- Você está em paz com Deus, impávido colosso?
Carmelo bebeu também com resignação. O uísque nunca fora sua bebida favorita. E menos ainda naquelas circunstâncias.
- Fui coroinha quando criança, mas não sei se isso conta pontos. Era em latim. Pensando bem, acho que estou em déficit.
- Era o que eu temia - Aguiar balançou a cabeça. - Creio que você precisa de uma jornada de perdão. Algum vigário de Cristo deve lhe dar sua bênção, porque nunca se sabe o que pode acontecer meia hora depois. O mundo está cheio de perigos (Aguiar apontava o indicador para o teto).