Entrevista:O Estado inteligente

domingo, maio 14, 2006

JOÃO UBALDO RIBEIRO Padecer no paraíso não é mais a mesma coisa

OESP

- Como é que é, tudo em cima? Eu já fiz minhas orações, minha filha, pedindo a Deus que não deixe de anotar o dia de hoje para descontar um tempinho no Purgatório. Acho que nem de churrascaria eles vão mudar hoje. Tudo a que eu tenho direito, já começou cedo, com o mesmo arranjo de rosas de sempre. Já ganhei dois celulares e periga ganhar mais uns quatro. Acho que vou montar uma central telefônica. E aí, já começaram a dar os presentes?

- Que bom que você ligou, eu ia te ligar mesmo. Este ano não vou nem aceitar presente, não quero bancar mais a otária, como até hoje.

- Qual é, criatura, a gente sempre banca a otária de qualquer jeito, faz parte. Desconheço caso de quem não tenha ganho pelo menos oito liquidificadores. Agora é celular, é a vida, você não vai deixar que isso te estrague o dia.

- Não, você não está sabendo de nada. Eu venho desconfiando há tempos, mas agora fiz uma investigação completa e já sei de tudo, você não acredita, é impressionante, não sei nem se vou conseguir te explicar direito.

- Você quer me matar de curiosidade, não estou entendendo nada, aconteceu alguma calamidade?

- Não é bem calamidade, mas eu... Ah, só começando do começo. Você sabe que meus dois filhos com o Gouveia sempre se deram muito bem com os filhos do meu casamento atual, os três do Armando. E o Armando e o Gouveia também sempre se deram bem.

- Não vem me dizer que teve briga. Não pode ter briga, eles...

- Briga nada, é o contrário. É um esquema que você não vai acreditar, e eu de otária, otária. Eu podia até ter algumas jóias boas, mas nem o primeiro celular eu ganhei, nem nunca vou ganhar. Você sabe o que eu descobri? Eu descobri que o Gouveia dava um dinheiro por fora todo mês aos filhos dele, só para que eles me dessem um presente melhor que os do Armando, sacanagem típica do Gouveia mesmo. Aliás, do Gouveia, não, porque o Armando não fica atrás. Os meninos do Gouveia contaram para o meninos do Armando e aí o Armando, como seria de esperar, resolveu fazer o mesmo com os dele. Quer dizer, todos os cinco meninos estavam num esquema de mensalão sem eu saber de nada.

- É, mas aí a beneficiada é você.

- Isso é o que você pensa. Em primeiro lugar, os canalhas do Gouveia e do Armando combinaram dar o mesmo mensalão a todos, pra evitar conflito. Mas depois o Armandinho - você conhece a lábia do Armandinho - convenceu o pai a dar mais a ele e aos dois irmãos por parte de pai. Quer dizer, já viu, não é?

- Mas, mas meio que faz parte, não vejo assim nada de excepcional.

- O quê? Formação de quadrilha! Claro, formação de quadrilha de Armando com os três filhos! Você acha isso certo? Formação de quadrilha, uma esculhambação!

- Está certo, mas ainda acho exagero seu e ainda é em seu benefício.

- Em meu benefício? Aparentemente foi em meu benefício, porque, quando o Armando traiu o cartel que tinha formado com o Gouveia, o dinheiro para os presentes aumentou.

- E então? Em seu benefício.

- Em meu benefício uma ova! Que é que você imagina que o Armandinho partiu para fazer logo em seguida?

- Bem, no lugar dele, eu começava a botar o dinheiro numa poupança, um fundo aí qualquer, sei lá.

- Eles botaram numa poupancinha mixuruca.

- Mixuruca como? O dinheiro não aumentou?

- Você não espera que eu conte as coisas direito. Eu ia falar na primeira providência que o Armandinho tomou. Não peço para você adivinhar, porque não ia adivinhar nunca. A primeira providência foi contar tudo para os irmãos filhos do Gouveia, que partiram para o mesmo esquema com o pai deles, que traiu o pacto com o Armando e topou logo. Mais formação de quadrilha, está sentindo o mar de lama?

- Exagero, exagero.

- Exagero? Até você está perdendo o senso moral? Primeiro, formação de quadrilha do Armando com os três filhos. Depois, formação de cartel do Armando com o Gouveia. Depois, traição do Armando ao Gouveia e do Gouveia ao Armando. Depois, nova formação de quadrilha, entre todos os meus cinco filhos, para me apunhalar pelas costas!

- Não, apunhalar pelas costas, não, pelo contrário. Te dar presentes melhores.

- Ha-há-ha! Ho-ho-ho! Qua-qua-qua! E o desvio do dinheiro dos presentes, sem o conhecimento dos pais? No ano passado, tiveram a cara-de-pau de me dar uma figa de madeira horrorosa que eles disseram que tinham comprado num antiquário baiano e ia me dar muita sorte. E eu sei que eles compraram aquela mer..., aquela figa santa na feira de São Cristóvão.

- Nesse caso, por que você não teve uma conversa franca com eles?

- Eles negaram tudo! Ninguém sabia de nada, ninguém viu nada, ninguém fez nada, ninguém tocou em dinheiro nenhum!

- Tudo bem, você está meio exaltada, não lhe tiro a razão. Mas não é motivo para não sair com eles hoje.

- Claro que é! Vocês sabem onde eles reservaram mesa? Numa pizzaria! Ainda tem o cinismo, eu não vou aceitar deboche, já basta a corrupção!O mesmo arranjo de rosas de sempre. Ganhei dois celulares e periga ganhar

mais uns quatro——Dava dinheiro por fora aos filhos para que me dessem um presente melhor que os do Armando——

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