Entrevista:O Estado inteligente

terça-feira, maio 16, 2006

Clóvis Rossi - A praça não é nossa




Folha de S. Paulo
16/5/2006

É noite de domingo em Estrasburgo. Quer dizer, deveria ser noite, porque o sino da fenomenal catedral gótica da cidade já faz algum tempinho que tocou as oito horas. Mas ainda está claro, muito claro, o céu é límpido, e a place Kléber, a principal de Estrasburgo, está cheia de gente sentada às mesinhas de calçada. Esclareça-se que toda a praça é um calçadão.
No hotel, zapeio pelos canais internacionais. A CNN mostra São Paulo transformada em Bagdá (menos destruída fisicamente, mas, ao fim e ao cabo, Bagdá pela quantidade de atentados praticados contra forças policiais). Mudo para a TV alemã. Não entendo nada, mas é de novo a São Paulo/Bagdá.
Na TV francesa, na TV italiana, na espanhola, na BBC, idem. Só não conferi a Al Jazeera, porque aí seria uma ironia mortal.
Volto à place Kléber com uma imensa sensação de derrota.
Sinto-me agredido pela placidez dos comensais da praça. Começo a torcer para que um PCC local faça um arrastão, assalte todos eles, leve embora as bicicletas, até elas agressivas pelo silêncio ensurdecedor na comparação com o ruído infernal dos carros "lá bas".
Nada disso acontece. No máximo, dois adolescentes, cheios de piercings, de garrafa na mão, passam falando alto. Eu me assusto de todo modo, mas os locais não dão a menor bola. Nem lhes passa pela cabeça que possam ser algo mais que bêbados.
Não aparece nem mesmo um pedinte, um menino triste e pobre para dizer: "Oncle, me dá algum aí". Ou uma senhora de olhos amargurados pela dureza da vida vendendo flores para sustentar os filhos. Nada.
O sino da catedral dá as nove horas, o som parece reverberar até o fim do mundo, até o fim dos tempos, mas a noite ainda demora meia hora para chegar. As gentes de Estrasburgo continuam a passear até pelas ruazinhas estreitas que, em São Paulo, seriam sinônimo de emboscada.
Por que eles têm direito à sua praça e eu, você, nós, não?

 

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