Entrevista:O Estado inteligente

domingo, maio 14, 2006

A alma dilacerada da América do Sul

EDITORIAL OESP

V iena, o berço da psicanálise, foi o cenário perfeito para a América do Sul expor ao mundo, sem pudor e sem freios, sua alma dilacerada. Desse ponto de vista, foi um sucesso a reunião de governantes da América Latina, do Caribe e da União Européia. Tudo ficou mais claro para quem ainda pudesse ter alguma dúvida. Ninguém mais deve perder o sono com a Comunidade Sul-Americana de Nações: é apenas um mito, como sempre foi, e já não pode haver discussão sobre isso. Também não pode haver ilusões sobre o Mercosul e sobre a Comunidade Andina de Nações. Os dois blocos já estavam em frangalhos, quando seus presidentes chegaram à Áustria, e dois dias em Viena bastaram para dissipar qualquer engano sobre isso.

A reunião de cúpula Mercosul-União Européia, marcada para ontem, foi cancelada por falta de quórum. Os presidentes do Uruguai, da Argentina e do Paraguai decidiram não participar. Não teria sentido uma conferência do presidente brasileiro com a representação mais alta do bloco europeu. Na melhor hipótese, esse encontro de cúpula poderia dar um impulso político às negociações birregionais, emperradas desde o ano passado. Mas os dirigentes europeus, acostumados a maior realismo, já não tinham grandes ilusões quanto a isso. Conheciam bem a situação do Mercosul e sabiam, portanto, que não haveria condições para uma discussão proveitosa.

O presidente do Uruguai, Tabaré Vázquez, não se dispôs a participar do encontro ao lado de seu colega argentino, Néstor Kirchner. Além disso, Vázquez e o presidente do Paraguai, Nicanor Duarte, têm mostrado crescente desconforto como sócios do Mercosul. Não surpreende, portanto, que também o presidente paraguaio tenha resolvido não ficar para a reunião.

O conflito entre Uruguai e Argentina esteve presente não só nos bastidores da Cimeira União Européia-América Latina e Caribe, mas também diante dos fotógrafos de todo o mundo. Quando os chefes de governo europeus e latino-americanos se juntaram para a foto protocolar, uma jovem argentina, militante do Greenpeace, tomou conta da cena. Tirou quase toda a roupa, ficou de biquíni e dançou diante de todos, carregando uma faixa de protesto contra o projeto uruguaio de duas fábricas de celulose à margem do Rio Uruguai.

Foi a maneira mais eficiente de chamar a atenção de todos para o conflito entre dois vizinhos do Mercosul. Nessa altura, a cena estava dominada por outra briga. No dia anterior, antes da abertura da conferência, o presidente boliviano, Evo Morales, havia dito uma porção de desaforos ao governo brasileiro e à Petrobrás, numa entrevista a repórteres de todo o mundo.

Diante da agressão, o governo brasileiro não pôde mais fingir que nada grave estava acontecendo, e o ministro de Relações Exteriores, Celso Amorim, teve de responder. Na sexta-feira, Evo Morales deu uma nova entrevista, amaciou as declarações e acusou a imprensa de fomentar o conflito.

O presidente venezuelano, Hugo Chávez, não teve muito que fazer para estragar o ambiente. Seu pupilo boliviano havia feito boa parte do serviço. Restou ao presidente Hugo Chávez declarar seu apoio a Morales, depois de sua Chancelaria, numa nota oficial, ter chamado "os amigos brasileiros" - ou seja, Lula e Amorim,de ignorantes.

De positivo, em termos comerciais, só houve o anúncio de negociações de um acordo entre União Européia e centro-americanos.

Em termos políticos e econômicos, todo o resto foi uma perda de tempo. Raras vezes, na história, um fracasso terá sido celebrado com tantas palavras e tanta retórica quanto na 4ª Cimeira União Européia-América Latina e Caribe. O comunicado final, com 59 itens e mais de uma centena de parágrafos, menciona o fortalecimento da relação entre os dois grupos de países, presta homenagem ao Estado de Direito, reafirma que a democracia é um valor universal e enumera uma porção de promessas bem-intencionadas.

Os presidentes prometeram empenho para "garantir a plena igualdade entre os sexos", manifestaram apoio à Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti e reafirmaram o compromisso com os objetivos e princípios consagrados na Carta das Nações Unidas. Raramente palavras tão belas devem ter sido recitadas às margens do Danúbio azul.


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