Entrevista:O Estado inteligente

domingo, abril 16, 2006

ELIO GASPARI Por favor, leia o relatório do Procurador

FOLHA

  O relatório do procurador-geral da República, Antonio Fernando Souza, que denunciou os 40 integrantes da quadrilha-companheira que saqueou as arcas públicas é uma peça que merece respeito. Todas as pessoas que já praguejaram contra as pizzas da Câmara dos Deputados e duvidaram do vigor das instituições nacionais devem tentar lê-lo. É um cartapácio de 52 mil palavras, equivale a três vezes e meia o tamanho do conto "O Alienista", de Machado de Assis. Falta-lhe o estilo da história de Simão Bacamarte, mas não é daqueles textos em dialeto juridiquês.
Chama o que foi "núcleo duro" de "quadrilha" e "organização criminosa". "Caixa dois", "dívidas de campanha" e outros eufemismos são designados pelo que foram: "desvio de recursos públicos, concessões de benefícios indevidos a particulares em troca de dinheiro e compra de apoio político".
Quem se ofendeu com o exibicionismo de alguns parlamentares nas CPIs deve a atenção da leitura aos servidores que agiram longe dos holofotes. Quem se considerou insultado pelas manobras-companheiras, pelos depoentes emudecidos e pelas mentiras deslavadas, vê a história contada como ela foi, com início, meio e (quase) fim. Faz bem ao cidadão.
A quadrilha é mostrada nas suas características cinematográficas. Veja-se como o tesoureiro do Banco Rural, José Francisco de Almeida Rego, descrevia as "mulas" que iam buscar os mensalões de seus chefes: "Eram pessoas simples, que não trajavam terno, e que se dirigiam ao depoente dizendo o seguinte: "Vim pegar uma encomenda". Fato curioso é que, nestes dois anos de altíssimos e freqüentes saques, nenhum recebedor fez a conferência do numerário, sendo que apenas se limitavam a abrir uma "bolsa" e colocar toda a quantia dentro dela".
Nelson Pereira do Santos poderia ter filmado esta cena para seu "Boca de Ouro": "Em dado momento, uma pessoa que costumava sacar esses valores apareceu na agência, indagando acerca "da encomenda". Como de rotina, tirei cópia da identidade dessa pessoa. Contudo, não cheguei a comparar o nome do homem que se apresentou com o nome que estava escrito no fax. Resultado: paguei para a pessoa errada. Esse saque era no valor de R$ 200 mil, razão pela qual fiquei desesperado. Em seguida, recebi uma ligação de Marcos Valério, dizendo que a pessoa que realmente deveria ter recebido a quantia de R$ 200 mil estava se dirigindo à agência para pegar o dinheiro. Marcos Valério disse também que era para eu "me virar". Eu estava arrasado e passando mal. Duas horas depois, ele falou com o gerente, que por sua vez disse-me para "ficar tranqüilo"."
O que teria levado Valério a se despreocupar com um pacote de R$ 200 mil nas mãos erradas? Não está no relatório, mas o cidadão que foi buscar o pacote deveria ter saído com R$ 500 mil. Valério percebeu que lucrara com o engano. Daí ter dito ao tesoureiro para "ficar tranqüilo".
Foi esse tipo de trama que "nosso guia" desprezou, dizendo que estava de "saco cheio" de denúncias. Afinal, segundo ele, "o que o PT fez, do ponto de vista eleitoral, é o que é feito no Brasil sistematicamente".
Lendo-se o relatório sente-se uma ponta de amargura quando se recorda que o presidente da República disse que "neste país, está para nascer alguém que venha querer discutir ética comigo".
A quadrilha montou um esquema de "Ocean's Eleven" ("Onze Homens e Um Segredo") -sem Brad Pitt-, mas estava mais para a turma do "Assalto ao Trem Pagador" (com Tião Medonho). Só a malandragem nacional levaria Duda (Dusseldorf) Mendonça a operar uma conta em Miami em nome de "Pirulito Company".
O documento do Ministério Público não é uma sentença. Ainda há chão pela frente, mas ficou distante o dia em que se vai achar que o mensalão foi "piada de salão" (Delúbio Soares) ou que "no Brasil, precisamos criar também um instrumento de pedido de desculpas daqueles que, levianamente, acusam os outros" (Lula).
Serviço: O texto está no sítio da Procuradoria Geral da República, com o título "Mensalão: PGR denuncia 40 pessoas". Ao pé da notícia há a conexão que baixa o relatório. Pode-se chegar lá pelo seguinte endereço: www.pgr.mpf. gov.br/pgr/imprensa/iw/nmp/ public.php?publ=6890.

Erosão
A base de Lula no andar de cima está em franca erosão. No segmento das pessoas com curso superior, ele caiu de 39% para 27% (Datafolha) ou de 32% para 23% (CNT/Sensus). O mesmo acontece no eleitorado com renda familiar média de mais de dez salários mínimos. (Nada a ver com andar de cima.) O bloco cuja renda vai até cinco salários mínimos (R$ 1.750) continua fechado com "nosso guia" (39% no CNT/ Sensus e 42% no Datafolha). Nesse grupo estão mais de 80% dos eleitores. A idéia de uma polarização política que afaste os dois andares pode vir a ser um fato da vida, mas não faz bem à democracia. (O fenômeno já ocorreu no primeiro turno da última eleição para a prefeitura de São Paulo.) Juntos, o andar de baixo e o de cima respeitam e defendem o Estado de Direito. Afinal, ele preside a convivência geral. Separados, os dois andares começam a acreditar que ele atrapalha seus projetos e suas utopias.

Registro
Diante dos acontecimentos de quinta-feira em Sorocaba, onde chocaram-se grupos favoráveis e contrários ao governo, é bom lembrar o que acontecia quando a quadrilha-companheira julgava-se onipotente. Em julho de 2003, diante do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, uma tropa de choque quebrou o nariz do técnico judiciário Antonio Carlos Correia. Era um manifestante do PSTU e se preparava para abrir uma faixa contra a reforma da Previdência. Garantiam a paz do ministro Antonio Palocci, que visitava o sindicato. Ninguém se desculpou.

Lula muda
"Nosso guia" decidiu tratar sua imagem. Cultiva uma discreta franja.

Holofote para a OAB
Há um movimento nas bases estaduais da OAB para jogar a instituição numa campanha pelo impedimento de Lula. Resta saber se a venerável Ordem não deveria dar prioridade à discussão do impedimento de advogados que abalam o crédito da profissão. Se houve uma classe legitimamente beneficiada pela quadrilha-companheira, foi a dos advogados. A defesa da turma já empregou uns cem. Cada um custa ao cliente, na média, R$ 500 mil/ano.

Arquivo preservado
A implosão do companheiro Alexandre Rodrigues, designado para assumir a diretoria do Arquivo Nacional no lugar de Jaime Antunes, mostrou que o governo às vezes evita o compromisso com o erro nessa área. Ao tempo da quadrilha-companheira, o general Jorge Armando Félix teve de tirar uma equipe de curiosos que fuçava os arquivos da Abin.

Comissário a bordo
Se os candidatos não aceitarem uma realidade na qual serão cobrados toda vez que descerem de jatinhos, a campanha eleitoral será transformada numa CPI móvel. O comissário José Dirceu, depois de voar de São Paulo a Juiz de Fora num Citation (fatura de uns R$ 12 mil). Saiu-se com esta: "Quer dizer que pobre não pode viajar de avião?" Acrescentou: "Deveriam perguntar como o Alckmin viaja, como o Garotinho está rodando o país todo". Verdade. O PSDB, o PMDB e o PT deveriam botar suas contas na internet. Como a campanha não começou, os caixas desses partidos devem contar de onde vem a bala para despesas desse tamanho.

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