Entrevista:O Estado inteligente

domingo, fevereiro 19, 2006

Editorial da Folha de S Paulo

ATALHO NO HAITI
O desfecho da controversa eleição presidencial no Haiti não traz um saldo positivo para a atuação do Brasil. O Itamaraty e o Planalto cederam ao argumento, de resto verossímil, de que a anulação do pleito, marcado por graves indícios de fraudes, seria estopim potencial para uma explosão de violência naquele país do Caribe.
Em nome da "Realpolitik", Brasília, aliada às demais diplomacias interessadas na estabilização do Haiti, ajudou a desferir um golpe no processo eleitoral. A hipocrisia e a desfaçatez com que as autoridades brasileiras trataram a violação de um princípio democrático pioram o quadro.
Mudar as regras de contagem dos votos depois de o escrutínio ter sido realizado é uma manobra que não seria aceita no Brasil, nos Estados Unidos nem na França. No entanto, os governos desses países não apenas a acataram de bom grado como a incentivaram no caso do Haiti.
Pior para o Brasil, que lidera a missão de paz das Nações Unidas no país caribenho e apenas disfarça com malabarismos verbais o fato de ter sido o mentor da intervenção heterodoxa. A idéia saiu do "pequeno riacho brasileiro, que foi sendo engrossado por outras águas, que se transformaram num caudaloso rio haitiano", declamou Paulo Pinto, embaixador em Porto Príncipe.
Manobrar para eleger presidente o franco favorito René Préval no primeiro turno foi uma decisão "elástica", nas palavras do mesmo diplomata. Ou um "atalho político", como prefere um encabulado Ricardo Seitenfus, enviado especial do governo brasileiro ao Haiti. O golpe fora anunciado de antemão pelo assessor para assuntos internacionais da Presidência, Marco Aurélio Garcia.
Ao encabeçar as gestões para violar a regra do jogo eleitoral no Haiti, o Brasil lembra a ação das potências ocupantes no colonialismo clássico. Supõe que os haitianos possam se contentar com qualquer idéia aproximada de democracia, mesmo que se desvie em pontos fundamentais do modelo que não aceita casuísmos, muito menos para eleger o chefe de Estado. É uma "democracia" mais ou menos, moldável às ocasiões.
Certamente haveria riscos ponderáveis e bastante imediatos caso a opção fosse respeitar as regras do jogo, como defendeu esta Folha. A instabilidade social e institucional no Haiti não precisa de muito para desaguar em violência generalizada. E o cancelamento do pleito -ou mesmo a realização de um segundo turno- poderia ser um catalisador a levar ao descontrole.
Mas o Brasil e a ONU estão no Haiti para ajudar a construir uma democracia moderna. Nessa missão, jamais poderiam concordar com soluções que não as canônicas. Se fosse para optar pelo "atalho político", era melhor que a diplomacia e os militares brasileiros tivessem ficado em casa. Esse é o tipo de desfecho que põe o essencial a perder, porque cede à mesma lógica que tem feito do Haiti um dos regimes políticos mais instáveis do planeta.

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