Ayaan Hirsi Ali: 'Todos têm medo de criticar o Islã'
Para deputada holandesa nascida na Somália, Europa precisa enfrentar a cultura da autocensura
Gerald Traufetter
DER SPIEGEL
Ayaan Hirsi Ali, a política holandesa obrigada a se esconder depois do assassinato do cineasta Theo van Gogh, reage ao escândalo dinamarquês das charges argumentando que, se a Europa não enfrentar os extremistas, a cultura da autocensura na crítica ao Islã que se espalhou pela Holanda se alastrará pela Europa. Ayaan é uma das mais ácidas combatentes do uso político do islamismo. Ela nasceu na Somália, onde experimentou a opressão à qual as mulheres muçulmanas são submetidas desde a infância. Quando seu pai tentou forçá-la a aceitar um casamento arranjado, Ayaan fugiu para a Holanda, onde chegou em 1992. Na Europa, renunciou ao Islã. Hoje, aos 36 anos, é membro do Parlamento holandês, para o qual foi eleita pelo partido neoliberal VVD e de onde faz discursos inflamados contra o islamismo. Recentemente, lançou o livro I Accuse (Eu Acuso) e está trabalhando na seqüencia de Submisssion, o filme dirigido por Theo van Gogh que causou a revolta dos muçulmanos e o subseqüente assassinato do cineasta.
A senhora chamou o profeta Maomé de tirano e pervertido. Theo van Gogh, o diretor de seu filme 'Submission', que critica o islamismo, foi assassinado por islâmicos radicais. A senhora está sob proteção policial. Consegue entender como se sentem os cartunistas dinamarqueses neste momento?
As charges devem ser mostrados em toda parte. Eles provavelmente estão atônitos. De um lado, uma voz em suas cabeças os encoraja a não vender sua liberdade de expressão. Ao mesmo tempo, devem estar experimentando a sensação chocante de como é perder a liberdade pessoal. Não se deve esquecer que eles pertencem à geração do pós-guerra e tudo que vivenciaram foi paz e prosperidade. E, agora, de repente, eles precisam novamente lutar pelos próprios direitos humanos.
Por que os protestos ganharam tamanha proporção?
Não existe liberdade de expressão nos países árabes onde acontecem as manifestações e a indignação pública. O motivo para tantas pessoas terem fugido desses locais para a Europa foi precisamente o de elas terem criticado a religião, o establishment político e a sociedade. Os regimes islâmicos totalitários vivem uma crise profunda. A globalização os expôs a mudanças consideráveis, e eles também temem as forças reformistas que estão se desenvolvendo entre os que emigraram para o Ocidente. Eles usam gestos ameaçadores contra o Ocidente, e o sucesso que obtêm com suas ameaças, como forma de intimidar essas pessoas.
Foi errado se desculpar pelas charges?
Mais uma vez, o Ocidente usou o princípio de oferecer primeiro uma face, depois a outra. Aliás, isso já virou uma tradição. Em 1980, a rede de televisão britânica privada ITV exibiu um documentário sobre o apedrejamento de uma princesa saudita que alegadamente havia cometido adultério. O governo de Riad interveio e o governo britânico se desculpou. Vimos a mesma resposta servil em 1987, quando o comediante holandês Rudi Carrell ridicularizou o líder revolucionário iraniano aiatolá (Ruhollah) Khomeini numa peça cômica (apresentada na televisão alemã). Em 2000, uma peça sobre a mulher mais jovem do profeta Maomé, chamada Aisha, foi cancelada antes de estrear em Roterdã. Depois, houve o assassinato de Van Gogh e agora as charges. Estamos constantemente nos desculpando, e nem percebemos quantas ofensas estamos aceitando. Enquanto isso, o outro lado não cede uma polegada.
Qual seria uma resposta apropriada da Europa?
Deve haver solidariedade. As charges devem ser mostradas em toda parte. Afinal, os árabes não podem boicotar os produtos de todos os países. Eles dependem demais das importações. E as companhias escandinavas deviam ser compensadas por seus prejuízos. A liberdade de expressão deve valer ao menos isso para nós.
Mas os muçulmanos, como qualquer comunidade religiosa, não deveriam poder se proteger também contra calúnias e insultos?
É precisamente este o reflexo do que eu estava falando: oferecer a outra face. Não passa um dia, na Europa e em outros lugares, sem que imãs radicais preguem o ódio em suas mesquitas. Eles chamam judeus e cristãos de inferiores e nós dizemos que eles estão apenas exercendo sua liberdade de expressão. Quando os europeus perceberão que os muçulmanos não concedem o mesmo direito a seus críticos? Depois que o Ocidente se prostrar, eles ficarão mais do que contentes de dizer que Alá dobrou os infiéis.
O que acha que resultará da tempestade de protestos contra as charges?
Poderemos ver o mesmo que aconteceu na Holanda, onde escritores, jornalistas e artistas se sentem intimidados desde o assassinato de Van Gogh. Todos têm medo de criticar o Islã. Um fato significativo é que Submission ainda não foi exibido nos cinemas.
Muitos criticaram o filme por ser demasiado radical e demasiado ofensivo.
A crítica de Van Gogh era legítima. Mas quando alguém é morto por sua visão do mundo, o que ele fez de errado já não é a questão. É aí que temos de defender nossos direitos fundamentais. Senão estaremos apenas reforçando o matador e admitindo que ele tinha uma boa razão para matar essa pessoa.
A senhora também tem sido criticada por suas críticas vigorosas ao Islã.
Por estranho que pareça, meus críticos nunca especificam até onde eu posso ir. Como se pode enfrentar problemas quando não se tem nem a permissão de defini-los claramente? Como o fato de que mulheres muçulmanas são mantidas trancadas dentro de casa, são violentadas e casadas contra sua vontade - e isso num país em que nossos intelectuais mais do que passivos estão tão orgulhosos de sua liberdade!
O debate sobre falar holandês nas ruas e os programas de integração para jovens marroquinos potencialmente violentos, essas coisas também são frutos de suas provocações?
As críticas ácidas finalmente provocaram um debate aberto de nosso relacionamento com imigrantes muçulmanos. Ficamos mais conscientes de certas coisas. Por exemplo, agora estamos classificando os assassinatos por honra segundo os países de origem das vítimas. E, finalmente, estamos voltando nossa atenção para as moças que são enviadas contra a sua vontade do Marrocos para a Holanda como noivas, e adotando uma legislação que dificulta esta prática.
A senhora está trabalhando numa seqüência de 'Submission'. Continuará amarrada à sua abordagem inflexível?
Sim, claro. Queremos continuar o debate sobre a pretensão de incondicionalidade do Alcorão, sobre a infalibilidade do profeta e moralidade sexual. Na primeira parte, retratamos uma mulher que fala com seu Deus, queixando-se de que, mesmo tendo cumprido as regras e se submetido, ela continuou sendo abusada por seu tio. A segunda parte trata do dilema em que a fé muçulmana envolve quatro homens diferentes. Um odeia judeus, o segundo é gay, o terceiro é um bon vivant que quer ser um bom muçulmano, mas desesperadamente sucumbe às tentações da vida, e o quarto é um mártir. Todos se sentem abandonados pelo seu Deus e decidem parar de adorá-lo.
Os acontecimentos recentes dificultarão a produção do filme?
As condições não poderiam ser mais duras. Somos obrigados a produzir o filme em completo anonimato. Todos os envolvidos no filme, de atores a técnicos, serão irreconhecíveis. Mas estamos determinados a completar o projeto. O diretor não gostava realmente de Van Gogh, mas acredita que, pelo bem da liberdade de expressão, filmar a seqüência é fundamental. Estou otimista de que poderemos lançar o filme este ano.
A alegação de incondicionalidade do Alcorão, que a senhora critica em 'Submission', é o obstáculo principal para reformar o Islã?
A doutrina que afirma que a fé é inalterável porque o Alcorão foi ditado por Deus precisa ser substituída. Os muçulmanos devem perceber que foram seres humanos que escreveram as escrituras sagradas. Afinal, a maioria dos cristãos não acredita no inferno, nos anjos ou na terra ter sido criada em seis dias. Eles agora vêem essas coisas como histórias simbólicas, mas continuam fiéis a sua crença.
TRADUÇÃO DE CELSO M. PACIORNIK