Entrevista:O Estado inteligente

sábado, junho 11, 2005

VEJA entrevista:Fernando Gabeira-"O PT acabou"

Ícone da esquerda brasileira, o deputado diz que o PT é "igual aos outros partidos"e que o presidente Lula está deslumbrado com o poder


Thaís Oyama


Anderson Schneider/Versor

"Ao superestimar o potencial da linguagem publicitária, Lula saiu da história para entrar no marketing"

Na lista da sucessão de erros que diz ter cometido ao longo da vida, o deputado e escritor Fernando Gabeira (PV) acrescentou, recentemente, mais um: o apoio ao governo Lula, que ele hoje define como "uma farsa". O ex-guerrilheiro do MR-8, que participou do seqüestro do embaixador americano Charles Elbrick em 1969, afirma que Lula "traiu" a nação e que o autoritarismo intrínseco do PT, partido ao qual ele próprio pertenceu até 2003, está na raiz da sua derrocada – que ele considera consumada. O ícone da esquerda brasileira, que já quis morrer pela revolução e se libertar pelo desejo, hoje diz que crê apenas na eficácia e na nobreza das pequenas ações. Aos 64 anos, pai de duas filhas – uma, surfista profissional, outra, estudante de psicologia –, o deputado já não vai de bicicleta ao Congresso, trocou-a por uma moto. O existencialismo que o inspirou na juventude ainda se revela no formato do atual casamento: à moda de Sartre, é cada um na sua. Na semana passada, ele deu a seguinte entrevista a VEJA.

Veja – O senhor escreveu, em artigo recente, que a chegada de Lula à Presidência foi uma crueldade histórica. O que isso significa?
Fernando Gabeira – Quando Lula foi candidato pela primeira vez, o Muro de Berlim havia caído e a etapa mundial que nós vivíamos já era a etapa do fracasso completo do socialismo. O que eu quis dizer foi que a eleição de Lula representou, simbolicamente e pela via eleitoral, a chegada de um operário ao poder, mas em um momento em que isso já não significava muito mais. Era um sonho retardatário. Nós chegamos a ele atrasados em relação à situação mundial. Na verdade, se tivéssemos tido um pouco mais de percepção, veríamos que, em vez do roteiro de Marx – da chegada do operário ao poder –, nós estávamos assistindo à chegada da classe operária ao paraíso. Porque o que aconteceu foi isso: Lula, ao chegar ao poder, ficou deslumbrado com ele.

Veja – Em que momentos o senhor percebe esse deslumbramento?
Gabeira – Em muitos momentos. A chegada ao governo significa uma ascensão social, pelo menos nessa circunstância. Você passa a desfrutar de bens materiais superiores aos que desfrutava antes. E quando você chega ao governo no bojo de um grande movimento social, muito admirado e cortejado, isso contribui para que você, de certa maneira, perca o rumo. E aí você vai ver as pirâmides, tirar foto ao lado das pirâmides, comprar um avião... Isso tudo aconteceu com Lula e, no seu caso, houve ainda a agravante de ele não ser uma pessoa inquieta, do ponto de vista intelectual.

Veja – Essa inquietação poderia ter contribuído para amenizar o deslumbramento a que o senhor se refere?
Gabeira – Sim, porque a chegada ao poder, com todos os atrativos que ele oferece, é sempre um questionamento da sua sabedoria. E também um desafio à capacidade de saber olhar os seus projetos e se manter fiel a eles. E nem o PT nem Lula souberam responder a isso. Diante da necessidade de abandonar um programa que talvez não estivesse totalmente ajustado à realidade, eles optaram simplesmente por jogar esse programa para o ar – sem substituí-lo. Não foi à toa que, durante a campanha eleitoral, poucos de nós, intelectuais que apoiamos Lula, se submeteram àquele mico no programa de televisão, de andar de um lado para o outro com uma pasta debaixo do braço, dando a impressão de que todos os problemas do Brasil estavam equacionados e que, quando chegássemos ao governo, resolveríamos tudo.

Veja – O senhor se recusou a participar da gravação desse programa?
Gabeira – Eu não fui convidado. Mas quando eles fizeram o programa final, com o Lula já eleito no primeiro turno, nós fomos chamados a São Paulo para gravar. Era um programa de auditório, e nós tínhamos de levantar as mãos, todos juntos, e balançá-las para o alto. Eu fiquei perplexo com aquilo, não fiz. O Lula até reclamou: "Poxa, Gabeira, você tá dormindo?". Claro que eu não estava dormindo, eu estava achando aquilo ridículo. Éramos participantes de um projeto político que, no último momento, havia sido sintetizado em um programa de auditório. Parecíamos chacretes.

Veja – Foi nesse momento que o senhor achou que o trem começava a sair dos trilhos?
Gabeira – O momento em que eu acho que o trem começa a sair dos trilhos é quando o Lula decide, nessa última campanha, que vai ganhar – e que, para ganhar, é preciso ter dinheiro e um excelente programa de televisão. São premissas aparentemente sensatas. Mas, ao descobrir o imenso potencial do veículo e da linguagem publicitária, ele passou a superestimar o trabalho de marketing em detrimento do movimento social que o apoiava. E isso marcou o princípio do governo: a agenda dele passou a ser uma agenda de foto-oportunidade, para usar uma expressão dos ingleses. O presidente recebia misses, por exemplo, enquanto o Cristovam Buarque, durante o tempo em que foi ministro, esteve com ele apenas uma vez. O ministro da Educação! Lula saiu da história para entrar no marketing.

Veja – O senhor participou da montagem do governo. Houve um momento, portanto, em que acreditou nele.
Gabeira – Eu acreditei pelo seguinte: nunca houve tanto entusiasmo popular em torno de uma candidatura. Nunca tantas pessoas competentes e interessantes se juntaram para ajudar uma candidatura. Então, eu achava que nós tínhamos um capital humano suficiente para realizar um processo de transformação importante para o Brasil. Só que o que houve foi uma traição.

Veja – A quem?
Gabeira – Às pessoas que acreditaram nele. Eu andei mais de 1 000 quilômetros com o Lula. Vi a esperança nos olhos das quebradeiras de coco do Maranhão, das plantadoras de cebola de Santa Catarina... Era visível a esperança delas, era visível que acreditavam na gente: "Essas pessoas são ligadas a nós, vão mudar a nossa vida". Vi mães chorando quando a caravana passava, mulheres levantando os seus bebês para que vissem o palanque... Era um capital de esperança muito grande. E parece que eles não se importaram muito com isso. Eles não tinham um projeto de Brasil, não tinham um projeto de nação – tinham um projeto de poder. E perderam o contato com a realidade. Prova disso é que, no auge dessa crise, José Dirceu disse àquele grupo de escritores espanhóis com que se encontrou em Madri que o projeto do PT era ficar doze anos no poder.

Veja – Qual o futuro da sigla, na sua opinião, diante dessa crise?
Gabeira – O PT tem um grave erro de origem. Ele opta pelo centralismo democrático, que foi um instrumento criado por Lenin, no princípio do século XX, para organizar trabalhadores fabris na luta contra o Exército do czar. Ora, nós já estamos no princípio do século XXI e o PT continua fazendo coisas em nome desse centralismo, como a expulsão da senadora Heloísa Helena. Isso é uma coisa ridícula, já não existe mais. Na Inglaterra, 240 deputados do Partido Trabalhista votaram contra a guerra no Iraque e continuam lá, ninguém vai expulsá-los. O PT foi construído de uma forma autoritária, e essa construção autoritária é que permitiu o deslocamento da camarilha que está hoje no Palácio do Planalto e que designa os caminhos do partido.

Veja – Do ponto de vista histórico, então, o PT estaria condenado. E do ponto de vista ideológico?
Gabeira – Desse ponto de vista, ele não existe mais. Acabou, foi para o espaço. A população já descobriu que o PT é igual aos outros que ele denunciava.

Veja – Em que momento isso aconteceu?
Gabeira – Quando ele achou que poderia abrir mão da bandeira ética que mantinha quando estava na oposição. Eles adotaram a tática da visita da velha senhora, a peça do Dürrenmatt (dramaturgo suíço Friedrich Dürrenmatt). Ele mostra uma prostituta que sai da cidade e volta rica. Aí, diz: "O mundo fez de mim uma prostituta e eu vou fazer desse mundo um bordel". Eles tiveram de conseguir dinheiro, tiveram de entrar no jogo e tiveram de comprar a sua base, já que não podiam buscá-la no PMDB nem no PSDB.

Veja – Em que medida essa saída fisiológica não seria também responsabilidade do sistema político brasileiro, em que o Executivo não tem maioria garantida no Congresso e precisa ficar o tempo todo tentando seduzi-lo para conseguir governar?
Gabeira – Acho que a culpa dessa estrutura é parcial. Porque, se você considerar a centro-esquerda brasileira, como o PT e o PSDB, existe uma base numérica para você dirigir o país. O problema é que, como os dois não vão jamais se entender, estão ambos condenados ao fisiologismo – ou, como diz o Fernando Henrique, condenados a ser a vanguarda do atraso. O que nos leva a uma situação em que, em 2006, restará só perguntar de quem será a vez de pedir a CPI – e de quem será a vez de abafá-la. Nós poderíamos superar essa etapa da história brasileira criando uma frente política que fosse não tão rigidamente ideológica, como eles querem, mas uma frente política dos homens e mulheres de bem. Havendo essa demarcação ética, o governo conseguiria isolar progressivamente os fisiológicos. O processo do PT foi justamente o contrário: ele fortaleceu o fisiologismo e colocou na presidência da Câmara, por meio dos seus erros, um homem que está em contradição com o Brasil moderno, que é o Severino Cavalcanti.

Veja – O ministro José Dirceu esteve presente em vários momentos importantes da sua vida. Foi um dos presos libertados por seu grupo em troca do embaixador americano seqüestrado, esteve exilado em Cuba na mesma época em que o senhor e teve peso fundamental na sua saída do PT. Qual a relação que vocês têm hoje?
Gabeira – Não há relação. Ele jamais gostou de mim. Em 1989, fui escolhido pela convenção do PT candidato a vice de Lula na eleição contra Collor e ele ficou muito zangado com isso. Aliás, foi um bombardeio geral. Chegaram a dizer – não ele, pessoalmente, mas aliados e pessoas do próprio PT – que eu não era viril o suficiente para representar a classe operária. Excelente isso, não?

Veja – A que se deveria isso, na sua opinião?
Gabeira – Acho que o temor dele é que as pessoas ocupem o seu espaço, que ameacem aquele trono que ele construiu tão duramente, através de tantas reuniões e tanto café frio. Imagine uma pessoa que coleciona sessenta grupos de trabalho! Eu digo que ele é o Tio Patinhas dos grupos de trabalho, que a piscina dele está cheia de relatórios e ele não deixa ninguém chegar perto. Como se dissesse: "Quem vai cuidar do imobilismo aqui sou eu". Mas, de maneira geral, acho que o PT não convive bem com uma personalidade. No sentido de que toda a estrutura do pensamento da esquerda clássico está voltada para fazer com que o conjunto se imponha sobre o indivíduo. Eles são anteriores à fase em que os indivíduos já deram um passo adiante, buscando a autenticidade como referência. Convivem mal com essa idéia.

Veja – Houve um momento em que o senhor acreditou na luta de classes como saída para a transformação da sociedade. Em outro momento, defendeu a política do corpo e, mais recentemente, viveu a experiência de ser, por dez meses, governo. Foram três decepções?
Gabeira – Eu acho que, realmente, na escolha do socialismo houve um erro meu no sentido de não compreender o momento histórico. Contribuiu para isso o fato de estarmos na ditadura militar e essa ditadura militar ser, em si, um símbolo do atraso. Então, você é facilmente levado à ilusão de que, sendo contra ela, você está na frente, quando a verdade é que você está na frente de um projeto em declínio. Quando entendi isso, com a visão do marxismo sendo superada na minha cabeça, não havia mais uma explicação da história, que era uma espécie de substituição da religião. Aí, eu tive de me voltar para dentro de mim para buscar onde estava a referência. Nisso, me vi com a política do corpo, que eu reconheço que foi absorvida pelo sistema. Passou a ser uma grande indústria, como, aliás, ocorre com todos os grandes movimentos. O elemento mais recente nessa sucessão de fracassos foi esse envolvimento com um governo que ia transformar o país e que resultou nessa farsa que vemos agora.

Veja – Diante desses três fracassos, o que restou das suas convicções?
Gabeira – A decisão de me apoiar em alguns princípios de atuação: a democracia – como uma visão estratégica, e não mais como os comunistas a viam, uma tática para chegar ao poder –, a defesa dos direitos humanos, da consciência ecológica e, finalmente, da justiça social. E caminhando por aí eu acho que posso fazer alguma coisa. Não é mais uma grande revolução, com o esplendor daqueles tempos, mas é um pouco parecido com aquela história do Salinger, de O Apanhador no Campo de Centeio: quando eu era jovem, eu queria morrer pela revolução. Agora, quero viver para transformar um pouco as coisas. Sem grandiosidade, sem melodrama. Com pequenas ações, apenas.

Veja – O senhor se separou recentemente. Voltou a se casar?
Gabeira – Eu tenho uma companheira, mas vivo na minha casa, com minha filha.

Veja – É um casamento à la Sartre, então?
Gabeira – O que me fascinou no existencialismo, em Sartre e Simone de Beauvoir, inicialmente, foi justamente a maneira como eles lidavam com essa questão da afetividade. Mas, hoje, não diria mais "a monogamia ou a liberdade", por exemplo. Diria que, se você está bem com uma pessoa, ótimo. Se não está, acho razoável que tente ficar bem com mais de uma.

Veja – O ministro Gilberto Gil declarou que parou de fumar maconha aos 50 anos. O senhor também parou?
Gabeira – Ah, mas eu não fiz 50 anos ainda! O Gil é mais velho, eu sou muito jovem...

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