Entrevista:O Estado inteligente

sábado, junho 04, 2005

Roberto Pompeu de Toledo:Volta à garagem, volta, Garganta Profunda


O caso do informante secreto de
Watergate
remete ao contraste
entre aqueles
tempos e os atuais

O Garganta Profunda que na semana passada se revelou como Mark Felt, outrora o nº 2 do FBI, a polícia federal americana, como que sai das profundezas de um subterrâneo para lembrar quanto os Estados Unidos mudaram desde aqueles idos de 1972/74. A imagem do subterrâneo não está aqui a troco de nada. Era num estacionamento subterrâneo de Washington que o alto funcionário do governo americano identificado, estes anos todos, pelo apelido de Garganta Profunda se encontrava, altas horas da madrugada, com o repórter Bob Woodward, a quem entregava alguns dos segredos do escândalo Watergate. Quem viu o filme Todos os Homens do Presidente talvez ainda guarde a cena, entre lúgubre e angustiante, temerária e romântica, do jovem repórter Woodward, interpretado por Robert Redford, a encontrar-se com seu informante no ambiente carregado de uma garagem deserta, onde a iluminação é precária e os passos ecoam pesadamente. O cenário realçava o caráter justiceiro da empreitada em que tanto o jovem repórter quanto o experimentado funcionário estavam envolvidos, contra o governo arrogante e abusivo do presidente Richard Nixon.

Mark Felt, aos 91 anos, tangido pelos familiares, saiu do armário, ou do subterrâneo, na semana passada, para declarar que é "o cara a quem chamavam de Garganta Profunda". De certa forma, é uma pena. O segredo, que ele, Woodward, Carl Bernstein (o repórter que fazia dupla com Woodward) e Ben Bradlee (o chefe dos dois no jornal The Washington Post) – os únicos a conhecê-lo – juraram só revelar depois da morte de Felt, era parte da aura sagrada que recobre o episódio. Também é uma pena que o Garganta Profunda passe doravante a ser conhecido como um mero Mark Felt. O apelido, tirado de um famoso filme pornográfico da época, foi crucial para o fascínio que cercava o personagem.

Mas não é isso o que interessa aqui. Interessa ressaltar que Garganta Profunda, mesmo que na pele de um simples Mark Felt, mesmo que na qualidade de um Super-Homem que se rebaixa à condição de Clark Kent, mesmo assim traz de volta um tempo de ouro da democracia americana, que contrasta com os tempos atuais. Watergate e a Guerra do Vietnã foram dois episódios do mesmo período em que a imprensa, refletindo uma opinião pública alerta e pugnaz (ou talvez uma opinião pública, refletindo uma imprensa alerta e pugnaz), investiu contra as ações ilegais, as operações clandestinas, as mentiras, as mistificações e as escolhas incorretas dos governantes com um ímpeto e um senso de decência que levariam, nos dois casos, à desgraça dos responsáveis e a uma mudança de curso no país. Hoje, temos nos Estados Unidos uma imprensa que, refletindo uma opinião pública domesticada (ou uma opinião pública que, refletindo uma imprensa domesticada), convive em paz e harmonia com um presidente que ganhou sua primeira eleição graças a uma fraude, lançou o país a uma aventura guerreira tão escabrosa quanto outrora a aventura do Vietnã e patrocina porões onde se pratica a tortura.

A imprensa americana deu-se, de uns tempos para cá – notadamente depois que o New York Times descobriu em suas fileiras um repórter que inventava histórias – à prática de atos de contrição. Mea culpa, mea culpa, e com isso querem dizer: "Vejam como somos honestos, vejam como reconhecemos nossos erros". Ora, o reporterzinho mentiroso é o de menos, quase nada, em comparação com a complacência de uma imprensa que aceitou se misturar aos batalhões invasores para "cobrir" a guerra do Iraque ou, pior ainda, que só registra tímidos e isolados protestos contra o escândalo inominável que é manter prisioneiros sem julgamento na base de Guantánamo. Voltou-se ao reflexo condicionado tão acrítico, tão pré-Vietnã e pré-Watergate, de julgar que é "impatriótico" questionar o governo até as últimas conseqüências.

O último ato de contrição foi da revista Newsweek, que se retratou e se desmilinguiu em autoflagelação por ter publicado a notícia de que agentes encarregados de interrogar presos em Guantánamo teriam, para intimidá-los, jogado um exemplar do Corão na privada e acionado a descarga. Ora, se a Newsweek não acertou em cheio, bateu na trave. Seguiram-se vários relatos de desrespeito ao Corão em Guantánamo, o que equivale, para um católico, a desrespeitar o crucifixo. Um dos presos, embora seu depoimento ainda careça de confirmação, denunciou, sim, o arremesso do livro na privada. Mesmo assim, a questão maior virou a Newsweek, ou "o fiasco da Newsweek", como se passou a dizer, como se fiasco muito maior não fosse a barbárie de Guantánamo.

A Anistia Internacional, num recente relatório, ao condenar as torturas praticadas por americanos no Iraque, no Afeganistão e em Guantánamo, lamentou o mau exemplo que isso significava para o mundo. Tudo o que vem da superpotência tem influência planetária e imenso poder de contágio. É o caso de uma imprensa submissa e de uma opinião pública inerte. Elas deixam o mundo mole como um pudim. Volta ao subterrâneo, Garganta Profunda, volta.
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