Entrevista:O Estado inteligente

sábado, junho 04, 2005

André Petry:Isso deve ser pecado


"Sobre os dois cientistas estrangeiros que menciona, Fonteles omite que são ambos da Opus Dei. Também omite que seis dos nove brasileiros citados são autores de obra coletiva patrocinada pela Pastoral Familiar."

Faltando poucas semanas para deixar o cargo, o procurador-geral da República, Cláudio Fonteles, fez um papel vergonhoso. Para satisfazer suas convicções católicas, Fonteles quer derrubar a lei que autoriza a pesquisa científica de células-tronco de embriões humanos. Na ação que apresentou ao Supremo Tribunal Federal, ele alega que a pesquisa é um assassinato, pois destrói os embriões humanos, violando o direito à vida desses embriões – um direito expressamente garantido pela Constituição. Dito dessa forma, até parece que o procurador está apenas interessado em interpretar a lei e defender a ordem jurídica. Engano. Ele quer, na verdade, somente defender suas convicções católicas, de acordo com as quais a vida tem início no momento em que um espermatozóide fecunda um óvulo. Isso fica claro porque, pela lei brasileira, pela norma jurídica em vigor no país, a vida começa com o nascimento, e não antes disso. É ao nascer que passa a existir a pessoa física, com personalidade jurídica, direitos e deveres. Portanto, Fonteles não está defendendo a lei brasileira – ele está com sua Bíblia debaixo do braço.

Mas, fosse só isso, Fonteles estaria apenas cometendo um erro grave. O erro de querer que um país laico como o Brasil seja regido por dogmas religiosos. Acontece que, além disso, há um problema talvez até mais grave. Nas treze páginas que entregou ao Supremo Tribunal Federal, Fonteles redigiu um texto no qual se esforça para esconder que sua motivação é apenas religiosa. No texto, ele não faz uma única menção à Bíblia, a Deus, à Igreja Católica, a dogmas religiosos, a crenças divinas. Nada. Tudo é feito apenas com menções a leis, artigos, códigos e especialistas de áreas pertinentes – ginecologia, genética, biologia, bioética, biomedicina, sexualidade. Um leitor desavisado atravessa as treze páginas e sai pensando que leu a defesa de uma "tese jurídica". É uma empulhação do procurador.

Em sua catilinária, Fonteles faz de conta que fala de ciência, mas na verdade fala apenas da ciência que sua religião apóia. E, claro, Fonteles esconde a militância religiosa dos cientistas que cita. Um deles (a professora Elizabeth Kipman Cerqueira) é representante da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, a CNBB. Há outro (a professora Alice Teixeira Ferreira) que integra o Núcleo de Fé e Cultura da PUC de São Paulo, uma iniciativa da Arquidiocese de São Paulo. Um terceiro (o professor Dalton Luiz de Paula Ramos), além de pertencer ao Núcleo de Fé e Cultura, é correspondente da Pontifícia Academia Pro Vita, entidade criada pelo Vaticano. Sobre os cientistas estrangeiros que menciona (o francês Jerôme Lejeune e o espanhol Gonzalo Herranz), Fonteles omite que são ambos integrantes da Opus Dei, a organização católica mais reacionária do mundo. Também omite que seis dos nove cientistas brasileiros citados são autores de uma obra coletiva patrocinada pela Pastoral Familiar, da Igreja Católica. Ele só fala, portanto, da patota de sua fé.

Os cientistas podem acreditar no que quiserem, podem defender a religião e a ciência como bem entenderem. O que não pode é um procurador da República – de uma República laica desde 1891, aliás – tentar enganar a platéia para impor sua fé. É desonesto. Talvez seja até pecado.
veja

Nenhum comentário:

Arquivo do blog