Entrevista:O Estado inteligente

sábado, junho 04, 2005

Entrevista: Timothy Garton Ash


O atoleiro europeu

Segundo o historiador inglês, a rejeição da Constituição européia lança o continente num período de "contemplação do próprio umbigo"


Carlos Graieb, de Londres

Recentemente, o acadêmico inglês Timothy Garton Ash recebeu uma ligação da Casa Branca. Era um convite do presidente americano, George W. Bush, para que fosse aos Estados Unidos "explicar-lhe a Europa". Aos 50 anos, Ash é diretor do Centro de Estudos Europeus da Universidade Oxford, uma das mais importantes da Inglaterra. É também um comentarista político dos mais lúcidos e prolíficos, escrevendo artigos semanais para o jornal londrino The Guardian. Já publicou oito livros, entre os quais A Revolução Polonesa, Os Arquivos (uma curiosa leitura dos documentos que a Stasi, a polícia secreta da antiga Alemanha comunista, reuniu a seu respeito enquanto ele cumpria uma temporada de estudos em Berlim) e Mundo Livre, o mais recente deles, que investiga as diferenças que separam a Europa dos Estados Unidos e sugere que elas não são de forma nenhuma insuperáveis. Na semana passada, logo depois da notícia de que a França e a Holanda haviam rejeitado, em barulhentos referendos, o texto constitucional da União Européia, Ash conversou com VEJA sobre o impacto dessas decisões.

Veja – Na semana passada, França e Holanda rejeitaram a Constituição da União Européia. Qual o impacto desse "não"?
Ash – As conseqüências são enormes. Estamos falando de um país líder do bloco europeu, a França, e de outro cuja influência não é nem um pouco desprezível. Nos próximos meses haverá referendos em várias nações, e algumas devem seguir o exemplo que foi dado agora. No Reino Unido, o governo talvez use a oportunidade para cancelar o referendo programado para julho, evitando assim uma custosa campanha de convencimento interno. Formalmente o processo de ratificação constitucional ainda pode ir adiante. Mas há quem diga, com boas razões, que a Constituição já está morta. A integração européia caiu num atoleiro. Arquitetar um novo entendimento entre 25 países não é fácil, e, infelizmente, tempo é um luxo de que não dispomos. Enquanto a Europa mergulha na contemplação do próprio umbigo e naquilo que Freud chamou de "narcisismo das pequenas diferenças", gigantes emergentes como a China e a Índia crescem com gana e os Estados Unidos talvez se sintam tentados, mais que nunca, a seguir em seu caminho de hiperpotência ensimesmada.  

Veja – Alguma lição positiva pode ser tirada do episódio?
Ash – Um certo estilo de conduzir a integração da Europa provavelmente chegou ao fim. Nesse modelo, uma elite burocrática transnacional tomava decisões complexas e esperava que os europeus concordassem com elas – ou que não prestassem atenção, como dizem os cínicos. Pois bem, desta vez as pessoas prestaram atenção, debateram muito, e não concordaram. O jargão tecnocrático usado pela Constituição foi um motivo constante de crítica e irritação nas últimas semanas. Daqui para a frente, será necessário esforçar-se bem mais para legitimar perante o público os tratados construídos em Bruxelas. Vai ser preciso reforçar os mecanismos de discussão democrática das instituições que se quer construir. Um desejo popular de mais informação e discussão manifestou-se claramente. Isso é positivo.

Veja – Quais foram as razões para o "não"?
Ash – Uma delas é o medo em relação a mudanças e ao desconhecido. Outra é o caráter de colcha de retalhos do tratado constitucional, que deu origem a uma pletora de "nãos" na Europa. O "não" holandês, que levou em conta temas como a imigração e a legislação social do país, peculiar por conter direitos como o da eutanásia, é diferente de um possível "não" dinamarquês, preocupado em resguardar um generoso sistema de seguridade social. Um "não" polonês seria ainda diverso desses que já mencionei, e assim por diante. O dilema europeu se manifesta em seu estado mais puro nas divisões entre franceses e britânicos. Os primeiros rejeitaram a Constituição por considerá-la enamorada demais da economia de mercado, desregulatória demais, uma ameaça às conquistas históricas do Estado de bem-estar social. Os segundos vêem o contrário: a Constituição seria centralizadora demais, estatizante demais, preocupada demais em preservar os anteparos de uma "Europa social". Enquanto essa tensão não for resolvida, será difícil encontrar um caminho estratégico para a Europa seguir.  

Veja – É possível conciliar essas diferenças?
Ash – O Reino Unido trabalhista de Tony Blair, que acaba de conquistar um terceiro mandato, de certa forma resolveu a equação. Ele se esforça para conservar a herança do Estado de bem-estar social criado pela Europa no século XX, com suas pensões, seus serviços gratuitos, suas leis trabalhistas. Ao mesmo tempo reconhece que, num mundo em que as garantias sociais oferecidas aos cidadãos e aos trabalhadores são a exceção, é quase impossível manter a competitividade e o crescimento sem reduzir em alguma medida as estruturas sociais mantidas pelo Estado. Observe as taxas de desemprego estrutural da economia francesa. Só a liberalização do mercado de trabalho pode fazê-las baixar. Chamemos de blairismo essa política que combina uma crença "americana" no liberalismo com um desejo "europeu" de criar instituições solidárias.  

Veja – Na intervenção no Iraque, o Reino Unido se aliou aos Estados Unidos enquanto a França e a Alemanha se opuseram à guerra. É possível superar essa outra grande questão que divide a Europa – que atitude assumir diante do gigante americano?
Ash – Nesse quesito não basta o blairismo, assim como não bastam as políticas do presidente francês Jacques Chirac. O primeiro tem razão ao dizer que não devemos tratar os Estados Unidos como um oponente, mas o segundo também está certo quando conclui que só uma Europa unida tem força para influir em Washington. Costumo brincar que, para superar o churchillismo britânico e o gaullismo francês, precisaríamos de uma figura composta, um "presidente Blairac".

Veja – O que são o churchillismo e o gaullismo de que o senhor fala?
Ash – As referências históricas, é claro, são Winston Churchill e Charles de Gaulle, respectivamente os líderes britânico e francês da II Guerra Mundial. É impossível entender a política contemporânea dos dois países sem refletir sobre a herança desses personagens. A pergunta "o que Churchill faria?", por exemplo, se ouve com freqüência na sede do governo inglês cada vez que uma crise estoura. Em questões internacionais, o churchillismo pode ser traduzido na seguinte fórmula: total compromisso britânico com os Estados Unidos, e uma certa ambigüidade em relação ao restante da Europa. Quanto ao gaullismo, seu lema é transformar a Europa num pólo de resistência aos americanos, o que significa que a UE precisa se constituir numa espécie de "superpotência" por direito próprio.

Veja – Interessa aos Estados Unidos ver uma Europa unida e forte?
Ash – Tempos atrás, o presidente Bush me convidou para uma tarde de conversa na Casa Branca. A pergunta que ele me fez foi exatamente essa: "Nós, americanos, queremos que a União Européia tenha sucesso?". Não sei de outro presidente que tenha se manifestado de modo tão franco. Ele falou de maneira muito aberta, sugerindo que, do seu ponto de vista, a resposta talvez fosse negativa – já que isso deixaria os Estados Unidos numa posição ainda mais isolada de hegemonia política. Pode-se dizer que os Estados Unidos são a última nação-Estado em sentido clássico, no sentido de prezar a soberania absoluta acima de todas as coisas. A onda mundial de antiamericanismo que se seguiu à guerra no Iraque, contudo, parece ter convencido Bush de que era necessário refazer laços com vários países, e em especial com os europeus. Seu segundo mandato começou com claras indicações de que ele está disposto a tratar a União Européia como um parceiro de verdade, em vez de preferir uma política de alianças ocasionais e de divisão. Resta saber se a Europa está pronta para colaborar.

Veja – Segundo o cientista político Robert Kagan, "americanos são de Marte e europeus são de Vênus". E os britânicos, de que planeta são?
Ash – Não creio que as diferenças entre americanos e europeus sejam assim tão profundas. Nossos continentes não estão se distanciando um do outro, pelo contrário. No tecido do cotidiano, nas atitudes culturais, as semelhanças são maiores do que nunca. Talvez tenhamos atitudes diferentes – em relação, por exemplo, ao papel que o direito e os organismos internacionais devem representar –, mas nossos interesses coincidem muito. Sem medo de soar grandiloqüente, eu diria que temos idêntico interesse em fomentar liberdades democráticas no mundo, em encontrar soluções para os problemas ecológicos, em combater a pobreza extrema dos países africanos. Quanto aos britânicos, em vez de recorrer à metáfora astronômica de Kagan, costumo dizer que somos filhos de Janus, o deus romano de duas faces. Olhamos simultaneamente para os dois lados. Somos filhos da Europa, e pais dos Estados Unidos. Estamos inextricavelmente ligados a ambos, de todas as maneiras que se possam imaginar: militar e gastronômica, social e econômica, política e cultural. Escolher um dos dois lados seria como realizar uma amputação. Dessa forma, é nosso interesse aproximar os dois mundos – e, ao fazer isso, creio que estaríamos satisfazendo um interesse mundial.  

Veja – A Turquia deve ser aceita na União Européia?
Ash – Sob critérios históricos, não creio que a Turquia possa ser considerada um país europeu. Pensar assim seria, por exemplo, desconsiderar a mais antiga delimitação do continente que conhecemos, aquela feita pelo geógrafo grego Eratóstenes no século III a.C., e também as delimitações criadas pelos navegantes do século XIV. Ainda assim, não tenho a menor dúvida de que esse país deve ser aceito na UE. Trata-se, nesse caso, de cumprir uma promessa que já tem algumas décadas, e que foi ratificada no encontro de cúpula da União realizado em 2000. O governo islâmico da Turquia vem empregando esforços para adaptar-se ao projeto europeu e assim fazer parte do clube. Se quebrarmos essa promessa, mandaremos a pior mensagem possível aos muçulmanos de todo o mundo: a de que eles não são bem-vindos no Ocidente, não importa quão secular e moderado seja o Estado em que vivem.

Veja – Que influência exerce o novo papa, Bento XVI, ao dizer que o cristianismo é parte constitutiva da cultura européia e que o mais certo seria que a Turquia "buscasse estabelecer um continente cultural com seus vizinhos árabes"?
Ash – O primeiro uso conhecido do termo "europeus" surge num texto medieval a respeito de uma batalha do século VIII contra guerreiros árabes. Depois, na pregação de Pio II, a palavra Europa se torna definitivamente um sinônimo de cristandade. Assim, não há dúvida de que o novo papa tem um bom argumento histórico. No entanto, no presente, é impossível fundamentar a identidade política da Europa em seu vínculo com o cristianismo. Para começar, estamos falando das populações mais seculares do mundo, aquelas que menos consideram a crença religiosa uma questão fundamental. Em segundo lugar, o número de muçulmanos na União Européia é cada vez maior. Estamos falando de 13 milhões de pessoas, talvez mais. A maioria dos países europeus ainda não aprendeu a fazer com que essas pessoas, em grande parte imigrantes ou filhas de imigrantes, se sintam em casa dentro de suas fronteiras. Mas isso deve acontecer, pois seria suicídio definir a identidade cultural européia em oposição ao islamismo. Assim, não creio que Bento XVI exerça grande influência ao fazer esse tipo de declaração.

Veja – Que desafio a China representa para a Europa?
Ash – Essa é provavelmente a pergunta mais enigmática que se pode fazer nos dias de hoje. A China é exemplo de algo paradoxal, um sistema de "capitalismo leninista". Lá, um regime ostensivamente comunista se combina com uma forma extremamente vibrante de economia de mercado. Se esse equilíbrio é sustentável, não sei dizer. A informação histórica sugere que, mais cedo ou mais tarde, a propagação da democracia burguesa em solo chinês deve se tornar inapelável. No momento, não é possível ter certeza de nada.  

Veja – Em diferentes momentos da entrevista, o senhor falou sobre a Ásia, a África, o Oriente Médio. Mas não mencionou a América Latina. Trata-se de uma região irrelevante?
Ash – Os países da América Latina se encontram na situação peculiar de não serem nem felizes nem infelizes o suficiente para se tornar um foco de atenção. Embora o Brasil tenha um peso econômico respeitável, e pareça estar num caminho de crescimento, ainda não mostra a pujança da China e da Índia. Gostaria de chamar atenção para um elemento, contudo. Ele tem a ver com uma pesquisa sobre liberdade realizada pela Freedom House em 2003. No mapa que resultou da pesquisa, três blocos aparecem como significativamente livres. Um deles é a Europa, outro é a chamada anglosfera (a parcela do mundo que fala inglês ou teve ligações coloniais com a Inglaterra) e o terceiro é justamente a América Latina. Essa não é uma conquista menor. Ela constitui a base para qualquer outro vôo. Costumo dizer que a história extraordinária da Europa é a história da expansão da liberdade. A América Latina é, hoje, um parceiro no esforço para propagar a liberdade pelo mundo.
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