no mínimo
16.06.2005 | Uma fileira de personalidades – políticos, magistrados, intelectuais, dirigentes de entidades várias – se declara surpresa, perplexa ou estupefata com o escândalo, espetacularmente denunciado pelo deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ), do chamado "mensalão", a mesada que o PT pagaria a deputados de outros partidos para apoiarem o governo na Câmara. Tanto quanto todas essas figuras da vida nacional, também me surpreendo que, eventualmente comprovadas as denúncias de Jefferson, as coisas tenham chegado a esse ponto na vida política do país.
Mas algo mais está me surpreendendo à medida que as muitas versões e os primeiros fatos sobre a denúncia vão se desenrolando: não vejo, entre os acusados, nada que se assemelhe a uma verdadeira indignação diante do calibre grosso, avassalador da suspeita.
Os aparentemente furiosos bate-bocas com Jefferson na Comissão de Ética da Câmara mantidos pelos deputados Sandro Mabel (GO) e Valdemar Costa Neto (SP), respectivamente líder na Câmara e presidente do PL – um dos partidos que estariam embolsando o dinheiro escuso – transpiraram mais baixaria do que sugeriram indignação verdadeira, biliar, visceral. Mabel e Costa Neto passaram a idéia de dois atores representando um papel, atores não à altura do ator-mor, o próprio Jefferson.
Na mesma linha vai o caso do deputado José Janene (PR), líder na Câmara do PP, o outro partido que receberia o "mensalão". Mesmo rebatendo em várias oportunidades, diante de câmeras, holofotes, microfones e gravadores, a acusação de que recebia o dinheiro e o distribuía a deputados de sua bancada, e recorrendo a termos como "canalha" quando se referia a Jefferson, suas negativas têm soado monocórdias, sem ênfase. Transmitem ardor equivalente ao de quem lê, em voz alta, uma bula de remédio.
Mabel, Costa Neto e Janene podem, claro, ser tão inocentes como o Arcanjo Gabriel. Só que sua linguagem corporal não tem acompanhado o teor das frases que proferem, embora estejam vários furos acima do desempenho do tesoureiro do PT, Delúbio Soares, segundo Jefferson o principal operador do esquema de corrupção. Na lamentável entrevista coletiva em que deveria explicar os fatos, Delúbio gaguejava, tropeçava nas palavras, hesitava diante das perguntas. Dizia-se vítima de "chantagem", mas suava frio, seus olhos não se fixavam em ninguém. Acabou salvo pelo gongo pelo presidente do PT, José Genoino, que não apenas não admitiu réplicas dos repórteres diante das respostas tremelicantes do tesoureiro como declarou encerrada a entrevista quando as coisas mal estavam esquentando.
Essa turma toda faz lembrar cena de teatro encenada durante a campanha presidencial de 1994 pelo ex-governador paulista Orestes Quércia (PMDB) no programa de entrevistas "Roda Viva", da TV Cultura de São Paulo. Lá pelas tantas, o jornalista Rui Xavier, na época em "O Estado de S. Paulo", cutucou Quércia: será que os 4% de preferências pelo candidato do PMDB indicados nas prévias estariam relacionados às constantes acusações de irregularidades que acompanharam a trajetória do ex-governador? Quércia é um político profissional experiente, que sempre soube encarar com absoluto controle perguntas do tipo. Eu próprio as fiz a ele, em diferentes oportunidades, inclusive em uma entrevista para o veículo onde então trabalhava, em seu gabinete no Palácio dos Bandeirantes.
Naquela noite no "Roda Viva", contudo, o ex-governador viera de ensaios com seus assessores disposto a confrontar o jornalista do "Estado", veículo com quem travava disputas na Justiça. E esquentou o tempo com Rui Xavier, a ponto de partir para a ofensa pessoal. Rui, que arrostou de maneira corajosa e altiva o episódio, contabilizou 14 diferentes epítetos recebidos de Quércia. Quem assistia à entrevista, porém, tinha a nítida impressão de que o ex-governador forçou a situação para parecer indignado diante de suspeitas sobre sua honra: palavras pesadas como "safado", "canalha" e "malandro" saíam de sua boca de forma mecânica, sem que em sua face se movesse um músculo além dos necessários para proferi-las.
A reação de outras figuras do comando do PT e do governo, não obstante não tenham repetido a performance grotesca do tesoureiro Delúbio, não lembra sequer a sombra do que foram. Começando por Genoino. Só Deus sabe o que o presidente do PT, durante 20 anos um deputado arrebatado e vulcânico, faria naquele tempo se sua honorabilidade política e pessoal estivesse sendo colocada em questão. Não diferente do chefe da Casa Civil, ministro José Dirceu: diante de acusações até agora sem provas, mas terríveis, reações burocráticas – "... acusações absolutamente infundadas contra a minha pessoa e integrantes do governo" – e pequenas ironias ("eu disse para o Genoino 'take it easy'").
Mais intrigante e mais preocupante tem sido a reação do presidente Lula. Sim, está certo que o presidente acabou reagindo ao escândalo dos Correios, que estaria vinculado ao PTB de Jefferson, demitindo toda a diretoria da empresa e igualmente a de um órgão em que o PTB tinha influência, o Instituto de Resseguros do Brasil (IRB) – 24 dias depois que vieram a público fitas de vídeo mostrando combinações espúrias. Lula também lembrou a própria (e digna) biografia e se disse disposto a "cortar na própria carne" no discurso feito no IV Fórum Mundial de Combate à Corrupção, dois dias e meio após a primeira entrevista-bomba de Jefferson sobre o pagamento de suborno – vamos usar a palavra certa – a deputados de sua base parlamentar de apoio.
Mas é inacreditável que, passados 12 dias da primeira entrevista do presidente do PTB, Lula ainda não tenha de forma alguma vindo a público para expressar, com todas as letras, sua indignação de homem de bem – seja diante de uma acusação falsa de Jefferson, seja diante da hipótese de que, não sendo falsa, seu governo suborna políticos para aprovar medidas no Congresso.
É espantoso que ainda não tenha movido uma palha para fazer uma negativa frontal, cabal e inequívoca a duas terríveis afirmações que vão na mesma direção: a de que ele fora avisado do suborno – pelo governador de Goiás, Marconi Perillo (PSDB), que o teria alertado em meados do ano passado, e pelo inevitável Jefferson no começo do ano, segundo o deputado disse à "Folha de S. Paulo", repetiu e tornou a repetir na Comissão de Ética da Câmara. Deixar no ar a possibilidade, não importa que acompanhada da informação de Jefferson de que o presidente "meteu o pé no freio" nos pagamentos, significa deixar pairando sobre a República o espectro de que sua maior autoridade, o presidente, ao não tomar providências policiais diante do que ouviu, descumpriu seus deveres constitucionais.
Essa reação parece coerente com o Lula que o eleitorado elegeu? O velho Lula levaria dois dias e meio para referir-se, mesmo que de modo indireto, a uma acusação de mar de lama que o afeta? Ficaria quase duas semanas quieto diante de suspeitas sobre sua honestidade? Onde foi parar aquele Lula telúrico, que expelia fogo pelas ventas e revelava uma indignação sagrada diante da injustiça, da desonestidade, da dilapidação do Estado brasileiro, da roubalheira? Onde está o murro na mesa?
Roberto Jefferson não é nem nunca foi flor que se cheire na política nacional. No entanto, soa mal, muito mal, a atitude do presidente diante do que o presidente do PTB trombeteia aos quatro ventos.
Entrevista:O Estado inteligente
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