"Frustrado" com o atual governo, ex-ministro da educação de FHC diz que preferia no MEC alguém com "pé no chão". "O Fundeb foi discutido por dois anos. Dificilmente será aprovado em 2005".
Um escritório de decoração sóbria e silêncio monástico, em bairro nobre de São Paulo, é o atual quartel-general do principal articulador da política de educação do PSDB nos oito anos de governo FHC. Agora à frente de uma empresa de consultoria que leva seu nome, o ex-ministro Paulo Renato Souza continua a ser observador atento do cenário educacional. E, embora distante geograficamente dos bastidores do governo, acompanha o que se discute e se decide em Brasília com o zelo paternal de quem se preocupa com a herança deixada por sua administração, mas também com os rumos do país em área fundamental para o nosso desenvolvimento durante as próximas décadas. Nesta entrevista a Marco Antonio Araujo e Sérgio Rizzo, ele se mostra insatisfeito sobretudo com a ênfase do atual governo no ensino superior e com o abandono de projetos que, na sua avaliação, eram importantes.
Qual a sua avaliação do governo Lula na área de educação?
Eu me sinto frustrado. Perdeu-se o foco em relação ao ensino básico. No primeiro ano, a prioridade do ex-ministro Cristovam Buarque era a alfabetização de adultos. Agora, há uma ênfase clara no ensino superior. Tanto que a medida mais importante adotada foi o ProUni (Programa Universidade para Todos) e a mais debatida é a reforma universitária. O Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais de Educação) foi discutido durante dois anos e meio. Precisaria já estar no Congresso. Muito dificilmente será aprovado em 2005. O ano que vem é eleitoral. Com isso, perdeu-se tempo. Nós fizemos o Fundef (Financiamento da Educação Básica). Era preciso criar dois fundos adicionais para tratar da educação infantil e do ensino médio. A proposta do Fundeb é polêmica porque pode tirar muito dinheiro do ensino fundamental para a educação infantil. De fato, dependendo da maneira como a emenda for redigida, isso vai acontecer.
Qual a lógica por trás disso?
Há simplesmente uma pressão de alguns municípios, especialmente do estado de São Paulo, onde o PT teve mais força, e ainda tem, pela educação infantil. Não sou contra, pelo contrário. No meu período, a educação infantil cresceu como nunca havia crescido até então. Mas não se pode fazer isso em detrimento do ensino fundamental.
Como essas verbas poderiam ser alocadas?
Se você fizer três fundos, o dinheiro não é misturado. Você fixa um valor mínimo para a educação infantil e o governo federal complementa. E assim também com o ensino médio. Sairia mais barato para o governo federal e não causaria prejuízo para o ensino fundamental. O ministro Tarso Genro disse que se reuniu com o presidente Lula e com o ministro da Fazenda, Antonio Palocci, e o presidente bateu o martelo por R$ 4 bilhões a mais para o Fundeb. No dia seguinte, o ministro Palocci disse esperar que o ministro Tarso diga de onde vai tirar o dinheiro, de onde vai cortar para tê-lo. Então, me parece que a coisa ainda não está resolvida no executivo e muito menos no legislativo. Quando chegar ao Congresso, vai haver uma grande discussão com governadores, prefeitos etc.
O governo Lula está investindo mais em educação?
Não tenho dados comparativos. Acho que não há grande diferença porque não foram feitas nem coisas muito maiores, nem coisas muito menores do que estávamos fazendo. Por outro lado, alguns programas do ensino básico foram abandonados. Por exemplo, o Parâmetros em Ação. Era um programa de treinamento de professores, extremamente importante, que estava montado em rede. Envolvia 600 mil alunos e mais de 3 mil municípios. Era bastante descentralizado. Não consigo enxergar o motivo do abandono, a não ser uma resistência pelo fato de nós termos feito o programa.
Mas o governo não propôs algo para o lugar?
Foi criado um programa de treinamento de professores, especialmente os do ensino médio, e aberta licitação com um consórcio de universidades e empresas privadas. Tenho grande desconfiança desses programas em que o governo contrata as universidades porque, em geral, isso se torna uma maneira de passar mais dinheiro para elas, e não de fazer programa de treinamento. No ano passado, quando fiz essa crítica, o ministro Tarso me enviou material dizendo o que estavam fazendo. Na carta em que respondi a ele, disse para ter cuidado porque espero que não aconteça o que sempre aconteceu. Quando as universidades federais são contratadas para fazer algo, não se faz essa coisa e o dinheiro vai para elas.
Como é a sua interlocução com o ministro?
Boa. O ministro Tarso é muito educado e conversamos sempre que nos encontramos. A visão é muito diferente: do mundo, da universidade, da educação em linhas gerais. A divergência, portanto, é profunda.
Quais os pontos principais dessa divergência?
O ministro Tarso tem uma visão de mundo centralista, de que tudo tem de ser feito de cima para baixo, e nós temos a nossa prática, desde o Ministério da Educação, que é descentralizada, com muita participação local. Os Parâmetros em Ação são um exemplo. Eram organizados por consórcios municipais. Dávamos o material, mas o programa era deles.
Considera sua gestão mais democrática do que a atual?
Sim. Quando discutimos qualquer coisa em relação à universidade, foi no Congresso. O ministro preferiu fazer reunião a portas fechadas com os dirigentes das universidades particulares. Isso, obviamente, leva a muitas críticas; se diz que foram discutidos ali pontos que não eram ligados ao ProUni, mas que eram do interesse de uma ou de outra universidade.
O que ocorreu com o Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira)?
No início do governo, havia ali visão completamente antagônica da avaliação. Hoje, as pessoas que estão lá têm um pouco mais de visão do que seja o sistema de informações. A notícia que eu tenho é de um desmanche das equipes técnicas. E, dentro do Inep, muita gente havia votado no PT. Não eram do PSDB. Foram tirados todos. Houve uma partidarização, a troca por militantes indicados pelas células partidárias. A qualidade caiu muito em relação à equipe técnica que tínhamos antes. Participei recentemente de um debate em que o ministro Tarso não citou nenhum dado. Isso me chamou a atenção. Hoje, talvez não haja uma preocupação com o embasamento quantitativo das informações.
E quanto à universalização do ensino?
Parece que caíram as taxas que haviam melhorado, de transição e de reprovação. Deixamos o ministério com uma herança positiva. Era só continuar com o que precisava ser feito: melhorar o acesso à escola, o desempenho dos alunos, a queda na reprovação. Era um momento positivo. Mas foram abandonados os programas de aceleração escolar. O Bolsa-Escola foi desvirtuado e transformado no Bolsa Família, que tem em si mesmo uma contradição com a questão da freqüência escolar. Ele é dado independente do número de crianças na escola. Não é para a criança, é para a família. É um valor maior, mas para a família, se ela tiver crianças na escola. Vejamos o caso de uma família que tenha três filhos: dois estão freqüentando e o outro não está cumprindo os 75% mínimos. Como fazer? Tirar a bolsa? No caso do nosso benefício individual, você poderia tirar daquele menino que não está cumprindo e deixar com os outros dois. Além disso, o governo declarou, depois de dois anos, que não fez nenhum controle. Já o havíamos implementado em 1.500 municípios. Era só dar continuidade. Eles abandonaram. Mas o grande problema do Bolsa Escola é que, ao ser transformado em Bolsa Família, se perdeu o foco na escola. Passou a ser um programa de ajuda aos carentes. Tudo bem. É social. Mas o foco na educação se perdeu.
O projeto de educação do PT estaria sendo construído enquanto o governo caminha?
Durante a campanha, a proposta para a educação era ruim. Não considerava a realidade, negava os avanços. Quando o PT virou governo, se deu conta de que aquela proposta não servia, mas ficou sem nada. A idéia do ProUni, por exemplo, nunca foi discutida pelo PT. Nem por nós. Pegou todo mundo de surpresa. E a reforma universitária é eminentemente sindical. São as bandeiras velhas deles. Não há uma concepção acadêmica. Tanto é que nenhum dos temas mais importantes da academia hoje é tratado: ensino a distância, formação de professores para o ensino básico, flexibilização. É um projeto velho, fruto de discussões dos anos 60 e 70.
A alfabetização de adultos não era uma prioridade da sua gestão.
Não, mas fizemos mais do que qualquer outro governo. Chegamos a 2,5 milhões de alfabetizados. Nosso foco era fechar a fábrica de analfabetos. Quando assumimos, tínhamos no Nordeste 16% de analfabetos na população de 15 a 19 anos. Havia um analfabetismo juvenil no Nordeste igual à média nacional. Então, trouxemos todas as crianças para a educação infantil e para o ensino fundamental, fechando a fábrica. A taxa de analfabetismo juvenil no Nordeste caiu para 6%. Por quê? Porque as crianças foram para a escola. O analfabetismo no Brasil é um problema das pessoas com mais de 50 anos. Entre os jovens, é muito pequeno. Tem os seus dias contados.
O que foi abandonado?
Os Parâmetros, o Provão. O governo está dizendo que o Saeb (Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica) será universal. Se o fizer assim, vai perdê-lo. É impossível fazer um Saeb de forma universal tão rigoroso como o que tínhamos por amostragem. É curioso: quando deve ser por amostragem, o governo resolve que será universal; quando deve ser universal, o governo resolve que será por amostragem. Outra perda importante foi a da avaliação do livro didático. Deixaram de dar estrelas e notas, e passaram a só fazer aquela avaliação extensiva. As estrelas eram uma orientação, mais transparente; a imprensa facilmente entendia, não precisava ler calhamaços. Com isso, se impede que se tenha uma notícia clara; quantos por cento dos livros são duas estrelas, três estrelas? É como o caso do Provão: se tira a transparência, se tira a informação da sociedade. Outro programa descontinuado, muito grave, é o de leitura. Estávamos distribuindo livros para as crianças. Disseram que agora vão dar livros para as bibliotecas.
Consegue identificar avanços?
O ProUni foi um avanço. Houve uma situação criada pelo fato de termos mais gente chegando ao ensino médio e que não estava conseguindo entrar no ensino superior. A forma de fazer o ProUni foi errada, mas houve um avanço. Não vejo outras grandes iniciativas do governo.
E a formação de professores? É cada vez mais forte a crítica de que eles são mal preparados.
É uma crítica correta. Quando assumimos, havia 47% de professores no ensino básico com formação superior. Terminamos com 62%. Houve um avanço. Mas temos ainda quase 40% que não tem nível superior. O governo deu para trás com uma medida importante ao aceitar uma interpretação do Conselho Nacional de Educação (errada, me parece) de que para a educação infantil não era exigida formação superior dos atuais professores. Só dos que viessem a entrar em concurso. É um erro. A Constituição é clara. Por que ela dá prazo até 2007? Se fosse para dizer que só vale para os novos, não era preciso dar prazo nenhum. Mas a Constituição estabeleceu um prazo. Teria dado tempo de chegar lá. Agora não vai dar mais, porque já se relaxou essa norma.
O senhor elogia a atuação do ministro Palocci. Preferiria ver na área de educação alguém como ele?
Ah, sem dúvida. Uma pessoa com mais pé no chão.
Sua gestão, assim como a atual, também enfrentou problemas com as instituições de ensino superior privadas?
Sim, mas esses problemas eram enfrentados no Congresso. Havia muita polêmica no Conselho Nacional de Educação. Acho que as nossas polêmicas eram mais abertas. E, no caso da avaliação do ensino superior, a nossa proposta e toda a idéia do Provão era algo que a sociedade iria responder. E de fato respondeu. Os cursos mal avaliados tiveram uma queda na inscrição, nos seus vestibulares, de 40%. Os cursos bem avaliados tiveram aumento de 20%. Contávamos muito com a participação da sociedade na implementação das medidas. O ministro Tarso Genro quer fiscalização. Quer mandar lá o fiscal.
Ouve-se muito a palavra auto-avaliação.
Isso é um viés corporativo. Precisamos entender também que o PT tem uma forte base na corporação universitária e essa corporação não gosta de avaliação externa. Não gosta de avaliação objetiva. Sempre lutou pela auto-avaliação, por uma reprodução interna da sua maneira de pensar. O sistema de avaliação foi exterminado pelo ministro Cristovam Buarque. O ministro Tarso Genro negociou com o relator um projeto que não é ruim, e que, aprovado pelo Congresso, não extingue o Provão, o sistema de avaliação como nós o concebemos. Ele diz que haverá uma prova, e que essa prova deverá ser feita pelo menos a cada três anos. Pelo menos. Mas permite-se a anualidade. Em segundo lugar, diz que nessa prova era admitida a amostragem, mas permitia-se a aplicação universal.
A amostragem permite a avaliação?
Não, ela compromete muito a avaliação. Os especialistas que foram ao ministério discutir com representantes do governo advertiram que era impossível avaliar da maneira como estavam fazendo. Mas eles fizeram e não estão conseguindo chegar aos resultados. Porque eles introduziram também outro erro, mais um desperdício de dinheiro, que não serve para nada: fazer a avaliação dos alunos do primeiro ano, por amostragem também. Não há como comparar estatisticamente o resultado do primeiro ano com o do último ano. Não são as mesmas amostras, não são as mesmas pessoas. Você pode comparar o resultado do Provão com o resultado do Enem de quatro anos antes. É a mesma geração. Você não pode, não tem instrumentos para comparar o aluno do primeiro ano com o do quarto. Você não sabe se nesse meio tempo mudou a qualidade dos alunos. É impossível.
A que você atribui a resistência ao modelo anterior?
É algo totalmente ideológico. 100% ideológico. O governo trouxe para cuidar do exame as pessoas que sempre se manifestaram contra o Provão. Pessoas que sempre foram contra o Provão encarregadas de montar o sistema de avaliação. Como houve uma reação muito grande quando eles falaram em acabar com o Provão, eles tentaram fazer um meio termo: em vez de anual, trienal; em vez de universal, por amostragem. Em termos de grande concepção, isso não muda nada. Você tem uma prova. Mas a UNE, por exemplo, passou a achar bom. Antes era muito ruim, agora ficou bom. O que mudou na essência? A única coisa que mudou é que o exame agora não pode avaliar nada. Mela a avaliação.
O governo tem hoje instrumentos para fechar uma faculdade ruim?
Tem instrumentos, como tinha no meu tempo. O governo precisa seguir os procedimentos legais; isso toma tempo, não é de uma hora para outra. Acho que hoje eles têm menos instrumentos porque perderam essa avaliação anual. Com uma avaliação a cada três anos, sempre a faculdade poderá dizer que ela vai se recuperar nos próximos três anos. Ela tem de esperar outra avaliação. No meu tempo, tinha de esperar apenas mais um ano. Fomos parados pela Justiça, mas estávamos já com o processo de fechamento de 12 cursos. Não escutei mais nada sobre isso, mas imagino que o governo não tenha fechado. Se o ministro não está em cima para fazer entrar na pauta, as coisas acabam esquecidas... Outra coisa que estamos observando no ensino superior, em função de não ter mais avaliação anual, é que as faculdades estão se aproveitando disso para mudar o quadro de professores. Estão demitindo doutores. É o inverso do que ocorria. Por ocasião do Provão, a faculdade tinha de informar qual era o seu quadro docente. Anualmente, tinha de dizer quantos doutores tinha. Se diminuísse a proporção de um ano para outro, isso ficaria óbvio nos relatórios à disposição de toda a imprensa. Agora, o Provão é a cada três anos. E não são mais divulgados os outros dados. As faculdades não têm de informar também o número de professores. Então, eles não estão sendo checados. Estão fazendo o que eles querem. Daí, em função de diminuir custos de uma maneira burra, estão cortando os professores mais qualificados, que são mais caros.
Isso não acaba favorecendo a lógica da mercantilização?
O governo diz que a reforma universitária é contra a mercantilização. Na prática, o que está acontecendo é que há um processo de deterioração na qualidade das universidades particulares. Quando assumimos, o ensino superior privado correspondia a 60% do setor. Quando deixei, o número era de 70%. A mercantilização não está no número de alunos, nem no número de faculdades. Mercantilização eu entenderia como tratar a educação como uma mercadoria comum. Ou seja: uma coisa que é passível de compra e venda. Mesmo na mercadoria comum, você olha a qualidade. Você não vai comprar uma mercadoria só pelo preço dela. O que nós fizemos foi introduzir o parâmetro da qualidade. Introduzir um critério de qualidade, por intermédio da avaliação. Havia de fato, nesse sentido, a mercantilização. Você veja que as faculdades novas, criadas depois do provão, são melhores do que as antigas. Têm mais notas A e B em Direito e Administração. Ora, se havia mercantilização no sentido de comprar coisa sem ver a qualidade, isso era antigamente. Ao introduzirmos a avaliação, nós justamente apontamos contra essa idéia de uma mercadoria que se compra e vende sem ver a qualidade. Em termos gerais, mercantilização não quer dizer má qualidade. Mas, no caso da educação, tem se associado mercantilização com má qualidade. No meu período, apesar da grande expansão, os dados mostram que houve importante melhoria da qualidade nas instituições privadas. Nesse sentido, não houve mercantilização. O que observo hoje é que alguns indicadores de qualidade que nós tínhamos, como qualificação de docentes, parece que vão começar a mostrar uma involução.
A proposta de reforma universitária não corresponderia a um enfrentamento aos interesses privados?
O projeto não ataca o problema da mercantilização na sua essência. É um projeto sindicalista. Que transfere poder das instituições federais e das particulares aos seus sindicatos de trabalhadores. Não há experiência bem-sucedida assim no mundo. Todas as experiências que foram por esse caminho levaram à queda na qualidade. A Suécia, por exemplo, teve uma experiência assim; os países latino-americanos que tiveram essa experiência fracassaram. Não vi grandes méritos no projeto de reforma. O ProUni tem um aspecto interessante, toca um problema que é sério, o do financiamento dos alunos de menor renda. Faz isso na forma de dar gratuidade das anuidades até 10% da matrícula. Isso é interessante. Escrevi um artigo dizendo que se eu tivesse tido essa idéia, não me deixariam chegar vivo ao ministério, me linchariam no meio do caminho. O ministro Tarso Genro me disse que entendeu isso como um elogio. A idéia é boa. O problema é a forma como foi implementado. Acho que tem a forma mais atrasada, aquela que abre margem a todo tipo de corrupção, a desvio de dinheiro. Idealmente, o modelo tinha de ser assim: todo mundo paga imposto e quem der vaga gratuita, eu pago pela vaga. Eu devolvo o dinheiro. Pago. E não fazer o contrário: eu dou isenção se você me der a vaga. Isso é uma coisa que beneficiou muito as instituições com fins lucrativos.
O senhor concorda com os elogios à atuação da ex-prefeita Mara Suplicy (PT) na área de educação em São Paulo?
Não, porque o projeto mais importante dela foram os CEUs; não é um programa de educação, é um programa social. Tenho aos CEUs a mesma crítica que fiz aos "Brizolões". Você não deve fazer uma coisa para poucos. Na educação, você faz para todos. Tem de cuidar de todos. Esse é o primeiro dever do dirigente público, cuidar da sociedade, especialmente dos mais pobres. Tem de universalizar e brigar pelo aumento da qualidade. Ter pontos e focos de excelência é importante quando você já universalizou, mas não é o caso aqui. O foco de excelência você tem quando seleciona alunos especiais, superdotados, e para eles você dá condições especiais, desde que você tenha atendido a todos com condições satisfatórias. Não é o caso de aleatoriamente selecionar três, quatro, vinte bairros para proporcionar escolas especiais a eles. Cuba tem um projeto diferenciado, para alunos especiais. Mas isso é diferente do que aconteceu em São Paulo.
E as ações afirmativas?
Tenho minhas críticas às cotas. Não é o melhor caminho. As ações afirmativas são importantes, mas acho que as mais eficazes são de outro tipo. Colocar todas as crianças na escola, cuidar daqueles que têm defasagens para que eles possam acompanhar a escola. Pessoas que vêm de famílias com defasagem educacional têm mais dificuldades. Você tem de criar classes especiais, condições especiais, programas de aceleração escolar. Depois, fazer com que essas crianças possam chegar ao ensino médio. E, chegando às portas da universidade, dar cursos vestibulares de boa qualidade para essas pessoas, para fazer com que elas possam compensar o fato de não terem o histórico escolar dos pais. Uma boa situação familiar é importante para a educação. Mas acho que a cota em si mesma é uma solução muito parcial lá na ponta, só na hora de entrar na universidade, e que tem o problema de provocar queda na qualidade.
Nem a cota socioeconômica seria justificável?
O problema é você ter entrando na universidade pessoas que estejam preparadas para a universidade. Nos cursos mais gerais, menos competitivos, talvez não se note a diferença. Naqueles mais competitivos, sim.
Por que o PSDB não consegue ser tão eloqüente ou audível nas suas críticas como era o PT, por exemplo, na época em que o senhor estava no governo?
É uma boa pergunta. O PT na oposição tinha muito mais charme do que o PSDB. Eu falo, escrevo artigos, tudo o mais.
Não seria um discurso muito técnico, e o do PT seria mais popular, inteligível e retórico?
Pode ser. O PT falava de uma espécie de utopia para quando chegasse ao poder. E não se viu nada disso. Na área social, está muito aquém do que se esperava. Talvez quando o PT passe para a oposição adote o tratamento que nós estamos dando ao governo hoje. A crítica do PT era até certo ponto bastante irresponsável, como se fosse possível fazer tudo. Acho que o fato de termos passado pelo governo também nos impede de fazer uma crítica mais panfletária. Sabemos que nem tudo é possível. Nossa crítica é mais comedida, em todas as áreas. Mais amadurecida. Talvez o país todo caminhe para isso.
Nos governos estaduais e nas prefeituras, o PSDB tem desenvolvido projetos de educação que merecem ser citados?
Em São Paulo, temos uma reforma que foi feita basicamente pelo governador Mário Covas. E o atual secretário, Gabriel Chalita, é uma pessoa que tem ascendência muito grande sobre os professores. De certa forma, está consolidando aquilo que foi feito. Acho que, em geral, os governos do PSDB vão bem nos estados na área de educação. Minas Gerais começou antes do que os outros estados a reforma na educação, em 1990, quando o governador era o Hélio Garcia. Começaram um projeto de descentralização, de tirar a politização que havia na área de educação. Ganharam inclusive notoriedade internacional. Hoje, Minas e São Paulo são equivalentes em termos de desempenho na educação.
Como avalia a proposta de conversão de parte da dívida externa em investimentos na área de educação.
Há determinados modismos que têm um grande apelo popular e de opinião pública entre os leigos e incautos. Isso é verdadeiro especialmente a temas econômicos. Conversão de dívida é um eufemismo para perdão de dívida, com a diferença de que o credor perdoa determinada dívida desde que o devedor se comprometa a colocar o equivalente ao valor perdoado em algum investimento específico, no caso a melhoria da educação. Essa é, portanto, uma questão a ser combinada e acordada com os credores. No caso dos países pequenos e de frágil economia, como muitos dos africanos ou Bolívia, Paraguai e Haiti na América Latina, essa tese pode ter mais chances de êxito por duas razões: primeiro, porque são países realmente pobres e que não têm recursos próprios para grandes investimentos em educação; segundo, porque o valor de suas dívidas é pequeno e seu perdão não tem o menor impacto nos países credores.
O Brasil não se enquadra em nenhuma dessas categorias. Além disso, a maior parte de nossa dívida externa é privada - entre empresas privadas. Quando se fala de perdão de dívida, em geral se está falando de dívida pública. Grande parte de nossa dívida pública é com organismos multilaterais como o BID, o Banco Mundial ou o Fundo Monetário. Qual será o critério para que esses organismos perdoem a dívida de um país e não de outro? Sobra dizer que se perdoarem as dívidas de todos, esses organismos quebrariam e deixariam de existir.
Um escritório de decoração sóbria e silêncio monástico, em bairro nobre de São Paulo, é o atual quartel-general do principal articulador da política de educação do PSDB nos oito anos de governo FHC. Agora à frente de uma empresa de consultoria que leva seu nome, o ex-ministro Paulo Renato Souza continua a ser observador atento do cenário educacional. E, embora distante geograficamente dos bastidores do governo, acompanha o que se discute e se decide em Brasília com o zelo paternal de quem se preocupa com a herança deixada por sua administração, mas também com os rumos do país em área fundamental para o nosso desenvolvimento durante as próximas décadas. Nesta entrevista a Marco Antonio Araujo e Sérgio Rizzo, ele se mostra insatisfeito sobretudo com a ênfase do atual governo no ensino superior e com o abandono de projetos que, na sua avaliação, eram importantes.
Qual a sua avaliação do governo Lula na área de educação?
Eu me sinto frustrado. Perdeu-se o foco em relação ao ensino básico. No primeiro ano, a prioridade do ex-ministro Cristovam Buarque era a alfabetização de adultos. Agora, há uma ênfase clara no ensino superior. Tanto que a medida mais importante adotada foi o ProUni (Programa Universidade para Todos) e a mais debatida é a reforma universitária. O Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais de Educação) foi discutido durante dois anos e meio. Precisaria já estar no Congresso. Muito dificilmente será aprovado em 2005. O ano que vem é eleitoral. Com isso, perdeu-se tempo. Nós fizemos o Fundef (Financiamento da Educação Básica). Era preciso criar dois fundos adicionais para tratar da educação infantil e do ensino médio. A proposta do Fundeb é polêmica porque pode tirar muito dinheiro do ensino fundamental para a educação infantil. De fato, dependendo da maneira como a emenda for redigida, isso vai acontecer.
Qual a lógica por trás disso?
Há simplesmente uma pressão de alguns municípios, especialmente do estado de São Paulo, onde o PT teve mais força, e ainda tem, pela educação infantil. Não sou contra, pelo contrário. No meu período, a educação infantil cresceu como nunca havia crescido até então. Mas não se pode fazer isso em detrimento do ensino fundamental.
Como essas verbas poderiam ser alocadas?
Se você fizer três fundos, o dinheiro não é misturado. Você fixa um valor mínimo para a educação infantil e o governo federal complementa. E assim também com o ensino médio. Sairia mais barato para o governo federal e não causaria prejuízo para o ensino fundamental. O ministro Tarso Genro disse que se reuniu com o presidente Lula e com o ministro da Fazenda, Antonio Palocci, e o presidente bateu o martelo por R$ 4 bilhões a mais para o Fundeb. No dia seguinte, o ministro Palocci disse esperar que o ministro Tarso diga de onde vai tirar o dinheiro, de onde vai cortar para tê-lo. Então, me parece que a coisa ainda não está resolvida no executivo e muito menos no legislativo. Quando chegar ao Congresso, vai haver uma grande discussão com governadores, prefeitos etc.
O governo Lula está investindo mais em educação?
Não tenho dados comparativos. Acho que não há grande diferença porque não foram feitas nem coisas muito maiores, nem coisas muito menores do que estávamos fazendo. Por outro lado, alguns programas do ensino básico foram abandonados. Por exemplo, o Parâmetros em Ação. Era um programa de treinamento de professores, extremamente importante, que estava montado em rede. Envolvia 600 mil alunos e mais de 3 mil municípios. Era bastante descentralizado. Não consigo enxergar o motivo do abandono, a não ser uma resistência pelo fato de nós termos feito o programa.
Mas o governo não propôs algo para o lugar?
Foi criado um programa de treinamento de professores, especialmente os do ensino médio, e aberta licitação com um consórcio de universidades e empresas privadas. Tenho grande desconfiança desses programas em que o governo contrata as universidades porque, em geral, isso se torna uma maneira de passar mais dinheiro para elas, e não de fazer programa de treinamento. No ano passado, quando fiz essa crítica, o ministro Tarso me enviou material dizendo o que estavam fazendo. Na carta em que respondi a ele, disse para ter cuidado porque espero que não aconteça o que sempre aconteceu. Quando as universidades federais são contratadas para fazer algo, não se faz essa coisa e o dinheiro vai para elas.
Como é a sua interlocução com o ministro?
Boa. O ministro Tarso é muito educado e conversamos sempre que nos encontramos. A visão é muito diferente: do mundo, da universidade, da educação em linhas gerais. A divergência, portanto, é profunda.
Quais os pontos principais dessa divergência?
O ministro Tarso tem uma visão de mundo centralista, de que tudo tem de ser feito de cima para baixo, e nós temos a nossa prática, desde o Ministério da Educação, que é descentralizada, com muita participação local. Os Parâmetros em Ação são um exemplo. Eram organizados por consórcios municipais. Dávamos o material, mas o programa era deles.
Considera sua gestão mais democrática do que a atual?
Sim. Quando discutimos qualquer coisa em relação à universidade, foi no Congresso. O ministro preferiu fazer reunião a portas fechadas com os dirigentes das universidades particulares. Isso, obviamente, leva a muitas críticas; se diz que foram discutidos ali pontos que não eram ligados ao ProUni, mas que eram do interesse de uma ou de outra universidade.
O que ocorreu com o Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira)?
No início do governo, havia ali visão completamente antagônica da avaliação. Hoje, as pessoas que estão lá têm um pouco mais de visão do que seja o sistema de informações. A notícia que eu tenho é de um desmanche das equipes técnicas. E, dentro do Inep, muita gente havia votado no PT. Não eram do PSDB. Foram tirados todos. Houve uma partidarização, a troca por militantes indicados pelas células partidárias. A qualidade caiu muito em relação à equipe técnica que tínhamos antes. Participei recentemente de um debate em que o ministro Tarso não citou nenhum dado. Isso me chamou a atenção. Hoje, talvez não haja uma preocupação com o embasamento quantitativo das informações.
E quanto à universalização do ensino?
Parece que caíram as taxas que haviam melhorado, de transição e de reprovação. Deixamos o ministério com uma herança positiva. Era só continuar com o que precisava ser feito: melhorar o acesso à escola, o desempenho dos alunos, a queda na reprovação. Era um momento positivo. Mas foram abandonados os programas de aceleração escolar. O Bolsa-Escola foi desvirtuado e transformado no Bolsa Família, que tem em si mesmo uma contradição com a questão da freqüência escolar. Ele é dado independente do número de crianças na escola. Não é para a criança, é para a família. É um valor maior, mas para a família, se ela tiver crianças na escola. Vejamos o caso de uma família que tenha três filhos: dois estão freqüentando e o outro não está cumprindo os 75% mínimos. Como fazer? Tirar a bolsa? No caso do nosso benefício individual, você poderia tirar daquele menino que não está cumprindo e deixar com os outros dois. Além disso, o governo declarou, depois de dois anos, que não fez nenhum controle. Já o havíamos implementado em 1.500 municípios. Era só dar continuidade. Eles abandonaram. Mas o grande problema do Bolsa Escola é que, ao ser transformado em Bolsa Família, se perdeu o foco na escola. Passou a ser um programa de ajuda aos carentes. Tudo bem. É social. Mas o foco na educação se perdeu.
O projeto de educação do PT estaria sendo construído enquanto o governo caminha?
Durante a campanha, a proposta para a educação era ruim. Não considerava a realidade, negava os avanços. Quando o PT virou governo, se deu conta de que aquela proposta não servia, mas ficou sem nada. A idéia do ProUni, por exemplo, nunca foi discutida pelo PT. Nem por nós. Pegou todo mundo de surpresa. E a reforma universitária é eminentemente sindical. São as bandeiras velhas deles. Não há uma concepção acadêmica. Tanto é que nenhum dos temas mais importantes da academia hoje é tratado: ensino a distância, formação de professores para o ensino básico, flexibilização. É um projeto velho, fruto de discussões dos anos 60 e 70.
A alfabetização de adultos não era uma prioridade da sua gestão.
Não, mas fizemos mais do que qualquer outro governo. Chegamos a 2,5 milhões de alfabetizados. Nosso foco era fechar a fábrica de analfabetos. Quando assumimos, tínhamos no Nordeste 16% de analfabetos na população de 15 a 19 anos. Havia um analfabetismo juvenil no Nordeste igual à média nacional. Então, trouxemos todas as crianças para a educação infantil e para o ensino fundamental, fechando a fábrica. A taxa de analfabetismo juvenil no Nordeste caiu para 6%. Por quê? Porque as crianças foram para a escola. O analfabetismo no Brasil é um problema das pessoas com mais de 50 anos. Entre os jovens, é muito pequeno. Tem os seus dias contados.
O que foi abandonado?
Os Parâmetros, o Provão. O governo está dizendo que o Saeb (Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica) será universal. Se o fizer assim, vai perdê-lo. É impossível fazer um Saeb de forma universal tão rigoroso como o que tínhamos por amostragem. É curioso: quando deve ser por amostragem, o governo resolve que será universal; quando deve ser universal, o governo resolve que será por amostragem. Outra perda importante foi a da avaliação do livro didático. Deixaram de dar estrelas e notas, e passaram a só fazer aquela avaliação extensiva. As estrelas eram uma orientação, mais transparente; a imprensa facilmente entendia, não precisava ler calhamaços. Com isso, se impede que se tenha uma notícia clara; quantos por cento dos livros são duas estrelas, três estrelas? É como o caso do Provão: se tira a transparência, se tira a informação da sociedade. Outro programa descontinuado, muito grave, é o de leitura. Estávamos distribuindo livros para as crianças. Disseram que agora vão dar livros para as bibliotecas.
Consegue identificar avanços?
O ProUni foi um avanço. Houve uma situação criada pelo fato de termos mais gente chegando ao ensino médio e que não estava conseguindo entrar no ensino superior. A forma de fazer o ProUni foi errada, mas houve um avanço. Não vejo outras grandes iniciativas do governo.
E a formação de professores? É cada vez mais forte a crítica de que eles são mal preparados.
É uma crítica correta. Quando assumimos, havia 47% de professores no ensino básico com formação superior. Terminamos com 62%. Houve um avanço. Mas temos ainda quase 40% que não tem nível superior. O governo deu para trás com uma medida importante ao aceitar uma interpretação do Conselho Nacional de Educação (errada, me parece) de que para a educação infantil não era exigida formação superior dos atuais professores. Só dos que viessem a entrar em concurso. É um erro. A Constituição é clara. Por que ela dá prazo até 2007? Se fosse para dizer que só vale para os novos, não era preciso dar prazo nenhum. Mas a Constituição estabeleceu um prazo. Teria dado tempo de chegar lá. Agora não vai dar mais, porque já se relaxou essa norma.
O senhor elogia a atuação do ministro Palocci. Preferiria ver na área de educação alguém como ele?
Ah, sem dúvida. Uma pessoa com mais pé no chão.
Sua gestão, assim como a atual, também enfrentou problemas com as instituições de ensino superior privadas?
Sim, mas esses problemas eram enfrentados no Congresso. Havia muita polêmica no Conselho Nacional de Educação. Acho que as nossas polêmicas eram mais abertas. E, no caso da avaliação do ensino superior, a nossa proposta e toda a idéia do Provão era algo que a sociedade iria responder. E de fato respondeu. Os cursos mal avaliados tiveram uma queda na inscrição, nos seus vestibulares, de 40%. Os cursos bem avaliados tiveram aumento de 20%. Contávamos muito com a participação da sociedade na implementação das medidas. O ministro Tarso Genro quer fiscalização. Quer mandar lá o fiscal.
Ouve-se muito a palavra auto-avaliação.
Isso é um viés corporativo. Precisamos entender também que o PT tem uma forte base na corporação universitária e essa corporação não gosta de avaliação externa. Não gosta de avaliação objetiva. Sempre lutou pela auto-avaliação, por uma reprodução interna da sua maneira de pensar. O sistema de avaliação foi exterminado pelo ministro Cristovam Buarque. O ministro Tarso Genro negociou com o relator um projeto que não é ruim, e que, aprovado pelo Congresso, não extingue o Provão, o sistema de avaliação como nós o concebemos. Ele diz que haverá uma prova, e que essa prova deverá ser feita pelo menos a cada três anos. Pelo menos. Mas permite-se a anualidade. Em segundo lugar, diz que nessa prova era admitida a amostragem, mas permitia-se a aplicação universal.
A amostragem permite a avaliação?
Não, ela compromete muito a avaliação. Os especialistas que foram ao ministério discutir com representantes do governo advertiram que era impossível avaliar da maneira como estavam fazendo. Mas eles fizeram e não estão conseguindo chegar aos resultados. Porque eles introduziram também outro erro, mais um desperdício de dinheiro, que não serve para nada: fazer a avaliação dos alunos do primeiro ano, por amostragem também. Não há como comparar estatisticamente o resultado do primeiro ano com o do último ano. Não são as mesmas amostras, não são as mesmas pessoas. Você pode comparar o resultado do Provão com o resultado do Enem de quatro anos antes. É a mesma geração. Você não pode, não tem instrumentos para comparar o aluno do primeiro ano com o do quarto. Você não sabe se nesse meio tempo mudou a qualidade dos alunos. É impossível.
A que você atribui a resistência ao modelo anterior?
É algo totalmente ideológico. 100% ideológico. O governo trouxe para cuidar do exame as pessoas que sempre se manifestaram contra o Provão. Pessoas que sempre foram contra o Provão encarregadas de montar o sistema de avaliação. Como houve uma reação muito grande quando eles falaram em acabar com o Provão, eles tentaram fazer um meio termo: em vez de anual, trienal; em vez de universal, por amostragem. Em termos de grande concepção, isso não muda nada. Você tem uma prova. Mas a UNE, por exemplo, passou a achar bom. Antes era muito ruim, agora ficou bom. O que mudou na essência? A única coisa que mudou é que o exame agora não pode avaliar nada. Mela a avaliação.
O governo tem hoje instrumentos para fechar uma faculdade ruim?
Tem instrumentos, como tinha no meu tempo. O governo precisa seguir os procedimentos legais; isso toma tempo, não é de uma hora para outra. Acho que hoje eles têm menos instrumentos porque perderam essa avaliação anual. Com uma avaliação a cada três anos, sempre a faculdade poderá dizer que ela vai se recuperar nos próximos três anos. Ela tem de esperar outra avaliação. No meu tempo, tinha de esperar apenas mais um ano. Fomos parados pela Justiça, mas estávamos já com o processo de fechamento de 12 cursos. Não escutei mais nada sobre isso, mas imagino que o governo não tenha fechado. Se o ministro não está em cima para fazer entrar na pauta, as coisas acabam esquecidas... Outra coisa que estamos observando no ensino superior, em função de não ter mais avaliação anual, é que as faculdades estão se aproveitando disso para mudar o quadro de professores. Estão demitindo doutores. É o inverso do que ocorria. Por ocasião do Provão, a faculdade tinha de informar qual era o seu quadro docente. Anualmente, tinha de dizer quantos doutores tinha. Se diminuísse a proporção de um ano para outro, isso ficaria óbvio nos relatórios à disposição de toda a imprensa. Agora, o Provão é a cada três anos. E não são mais divulgados os outros dados. As faculdades não têm de informar também o número de professores. Então, eles não estão sendo checados. Estão fazendo o que eles querem. Daí, em função de diminuir custos de uma maneira burra, estão cortando os professores mais qualificados, que são mais caros.
Isso não acaba favorecendo a lógica da mercantilização?
O governo diz que a reforma universitária é contra a mercantilização. Na prática, o que está acontecendo é que há um processo de deterioração na qualidade das universidades particulares. Quando assumimos, o ensino superior privado correspondia a 60% do setor. Quando deixei, o número era de 70%. A mercantilização não está no número de alunos, nem no número de faculdades. Mercantilização eu entenderia como tratar a educação como uma mercadoria comum. Ou seja: uma coisa que é passível de compra e venda. Mesmo na mercadoria comum, você olha a qualidade. Você não vai comprar uma mercadoria só pelo preço dela. O que nós fizemos foi introduzir o parâmetro da qualidade. Introduzir um critério de qualidade, por intermédio da avaliação. Havia de fato, nesse sentido, a mercantilização. Você veja que as faculdades novas, criadas depois do provão, são melhores do que as antigas. Têm mais notas A e B em Direito e Administração. Ora, se havia mercantilização no sentido de comprar coisa sem ver a qualidade, isso era antigamente. Ao introduzirmos a avaliação, nós justamente apontamos contra essa idéia de uma mercadoria que se compra e vende sem ver a qualidade. Em termos gerais, mercantilização não quer dizer má qualidade. Mas, no caso da educação, tem se associado mercantilização com má qualidade. No meu período, apesar da grande expansão, os dados mostram que houve importante melhoria da qualidade nas instituições privadas. Nesse sentido, não houve mercantilização. O que observo hoje é que alguns indicadores de qualidade que nós tínhamos, como qualificação de docentes, parece que vão começar a mostrar uma involução.
A proposta de reforma universitária não corresponderia a um enfrentamento aos interesses privados?
O projeto não ataca o problema da mercantilização na sua essência. É um projeto sindicalista. Que transfere poder das instituições federais e das particulares aos seus sindicatos de trabalhadores. Não há experiência bem-sucedida assim no mundo. Todas as experiências que foram por esse caminho levaram à queda na qualidade. A Suécia, por exemplo, teve uma experiência assim; os países latino-americanos que tiveram essa experiência fracassaram. Não vi grandes méritos no projeto de reforma. O ProUni tem um aspecto interessante, toca um problema que é sério, o do financiamento dos alunos de menor renda. Faz isso na forma de dar gratuidade das anuidades até 10% da matrícula. Isso é interessante. Escrevi um artigo dizendo que se eu tivesse tido essa idéia, não me deixariam chegar vivo ao ministério, me linchariam no meio do caminho. O ministro Tarso Genro me disse que entendeu isso como um elogio. A idéia é boa. O problema é a forma como foi implementado. Acho que tem a forma mais atrasada, aquela que abre margem a todo tipo de corrupção, a desvio de dinheiro. Idealmente, o modelo tinha de ser assim: todo mundo paga imposto e quem der vaga gratuita, eu pago pela vaga. Eu devolvo o dinheiro. Pago. E não fazer o contrário: eu dou isenção se você me der a vaga. Isso é uma coisa que beneficiou muito as instituições com fins lucrativos.
O senhor concorda com os elogios à atuação da ex-prefeita Mara Suplicy (PT) na área de educação em São Paulo?
Não, porque o projeto mais importante dela foram os CEUs; não é um programa de educação, é um programa social. Tenho aos CEUs a mesma crítica que fiz aos "Brizolões". Você não deve fazer uma coisa para poucos. Na educação, você faz para todos. Tem de cuidar de todos. Esse é o primeiro dever do dirigente público, cuidar da sociedade, especialmente dos mais pobres. Tem de universalizar e brigar pelo aumento da qualidade. Ter pontos e focos de excelência é importante quando você já universalizou, mas não é o caso aqui. O foco de excelência você tem quando seleciona alunos especiais, superdotados, e para eles você dá condições especiais, desde que você tenha atendido a todos com condições satisfatórias. Não é o caso de aleatoriamente selecionar três, quatro, vinte bairros para proporcionar escolas especiais a eles. Cuba tem um projeto diferenciado, para alunos especiais. Mas isso é diferente do que aconteceu em São Paulo.
E as ações afirmativas?
Tenho minhas críticas às cotas. Não é o melhor caminho. As ações afirmativas são importantes, mas acho que as mais eficazes são de outro tipo. Colocar todas as crianças na escola, cuidar daqueles que têm defasagens para que eles possam acompanhar a escola. Pessoas que vêm de famílias com defasagem educacional têm mais dificuldades. Você tem de criar classes especiais, condições especiais, programas de aceleração escolar. Depois, fazer com que essas crianças possam chegar ao ensino médio. E, chegando às portas da universidade, dar cursos vestibulares de boa qualidade para essas pessoas, para fazer com que elas possam compensar o fato de não terem o histórico escolar dos pais. Uma boa situação familiar é importante para a educação. Mas acho que a cota em si mesma é uma solução muito parcial lá na ponta, só na hora de entrar na universidade, e que tem o problema de provocar queda na qualidade.
Nem a cota socioeconômica seria justificável?
O problema é você ter entrando na universidade pessoas que estejam preparadas para a universidade. Nos cursos mais gerais, menos competitivos, talvez não se note a diferença. Naqueles mais competitivos, sim.
Por que o PSDB não consegue ser tão eloqüente ou audível nas suas críticas como era o PT, por exemplo, na época em que o senhor estava no governo?
É uma boa pergunta. O PT na oposição tinha muito mais charme do que o PSDB. Eu falo, escrevo artigos, tudo o mais.
Não seria um discurso muito técnico, e o do PT seria mais popular, inteligível e retórico?
Pode ser. O PT falava de uma espécie de utopia para quando chegasse ao poder. E não se viu nada disso. Na área social, está muito aquém do que se esperava. Talvez quando o PT passe para a oposição adote o tratamento que nós estamos dando ao governo hoje. A crítica do PT era até certo ponto bastante irresponsável, como se fosse possível fazer tudo. Acho que o fato de termos passado pelo governo também nos impede de fazer uma crítica mais panfletária. Sabemos que nem tudo é possível. Nossa crítica é mais comedida, em todas as áreas. Mais amadurecida. Talvez o país todo caminhe para isso.
Nos governos estaduais e nas prefeituras, o PSDB tem desenvolvido projetos de educação que merecem ser citados?
Em São Paulo, temos uma reforma que foi feita basicamente pelo governador Mário Covas. E o atual secretário, Gabriel Chalita, é uma pessoa que tem ascendência muito grande sobre os professores. De certa forma, está consolidando aquilo que foi feito. Acho que, em geral, os governos do PSDB vão bem nos estados na área de educação. Minas Gerais começou antes do que os outros estados a reforma na educação, em 1990, quando o governador era o Hélio Garcia. Começaram um projeto de descentralização, de tirar a politização que havia na área de educação. Ganharam inclusive notoriedade internacional. Hoje, Minas e São Paulo são equivalentes em termos de desempenho na educação.
Como avalia a proposta de conversão de parte da dívida externa em investimentos na área de educação.
Há determinados modismos que têm um grande apelo popular e de opinião pública entre os leigos e incautos. Isso é verdadeiro especialmente a temas econômicos. Conversão de dívida é um eufemismo para perdão de dívida, com a diferença de que o credor perdoa determinada dívida desde que o devedor se comprometa a colocar o equivalente ao valor perdoado em algum investimento específico, no caso a melhoria da educação. Essa é, portanto, uma questão a ser combinada e acordada com os credores. No caso dos países pequenos e de frágil economia, como muitos dos africanos ou Bolívia, Paraguai e Haiti na América Latina, essa tese pode ter mais chances de êxito por duas razões: primeiro, porque são países realmente pobres e que não têm recursos próprios para grandes investimentos em educação; segundo, porque o valor de suas dívidas é pequeno e seu perdão não tem o menor impacto nos países credores.
O Brasil não se enquadra em nenhuma dessas categorias. Além disso, a maior parte de nossa dívida externa é privada - entre empresas privadas. Quando se fala de perdão de dívida, em geral se está falando de dívida pública. Grande parte de nossa dívida pública é com organismos multilaterais como o BID, o Banco Mundial ou o Fundo Monetário. Qual será o critério para que esses organismos perdoem a dívida de um país e não de outro? Sobra dizer que se perdoarem as dívidas de todos, esses organismos quebrariam e deixariam de existir.
Nenhum comentário:
Postar um comentário