Entrevista:O Estado inteligente

quarta-feira, junho 15, 2005

Miriam Leitão :O intolerável

 o globo

O Brasil parou ontem diante do mais estarrecedor depoimento já visto. E o país tem vivido fatos extremos nestes 20 anos da sua jovem democracia. Nos próximos meses, as instituições estarão passando por um duro teste. É hora grave e dolorosa. Ela exige que cada um saiba o seu papel e o exerça para proteger o que temos de mais precioso: as instituições que construímos em 20 anos de uma longa luta.
O Congresso terá que cortar na carne. Esse processo não terminará sem cassações de mandato. O governo terá que fazer uma profunda investigação sobre seus procedimentos, seus fatos e personagens. Não bastarão os clichês de retórica, como "não ficará pedra sobre pedra" ou "cortarei na própria carne", que o presidente Lula tem oferecido ao país. Será preciso que as expressões combinem com os atos do próprio governo. O país terá que encarar de frente anomalias que tem tolerado como se fossem parte do processo democrático. É natural que uma coalizão divida o poder entre os partidos da base; não é nada natural transformar cargos em caixinhas de arrecadação.


Tomemos apenas os pontos nos quais o deputado Roberto Jefferson se auto-incrimina. Não se pode aceitar a sem-cerimônia com que o deputado diz que os partidos "não nomeiam dirigentes de estatais sem uma contrapartida". Não é aceitável que o presidente do IRB se disponha a arrecadar dinheiro para repassar a um partido e depois afirme: "Eles não querem repassar por fora." É espantoso que ele diga ter recebido dinheiro de um publicitário com contrato com o governo, em dinheiro vivo, como parte do financiamento de campanha que o PT lhe prometeu. E que, segundo disse, nada foi formalizado porque o PT não quis. "Ainda dá para fazer uma declaração retificadora", sugeriu Roberto Jefferson ao deputado do PT.

A CPI ou as CPIs, em algum momento, deixarão claro se havia ou não o pagamento de mensalidade aos deputados da base para votarem com o governo. Isso terá um efeito demolidor sobre o governo e sobre os responsáveis por isso. Se houve mensalão, o presidente da República estará mal seja qual for o resultado da investigação: se houve e ele não soube de nada, exceto por Roberto Jefferson, isso quer dizer que pessoas no governo se sentem autorizadas a tomar as mais dramáticas decisões sem sequer consultá-lo. Fica sendo, portanto, figura decorativa de seu próprio governo. Se já sabia, o problema é ainda maior. A única alternativa boa para o presidente Lula é não ter havido nada do que está sendo relatado pelo deputado com riqueza de detalhes, diálogos, datas e pessoas.

Se o mensalão é fruto apenas da mente de um ficcionista enlouquecido, ainda assim, há muito a apurar. Afinal, o acusado-acusador de hoje foi, até ontem, parte da base parlamentar do governo. No depoimento na Comissão de Ética, não se falou em um detalhe que por si só é chocante e que submergiu no mar de irregularidades que chamaram a atenção dos senhores deputados e deputadas: Roberto Jefferson tem dito que o tesoureiro, o secretário-geral e o presidente do PT, Delúbio Soares, Silvio Pereira e José Genoino faziam reuniões no Planalto para deliberar sobre distribuição de cargos públicos. O que há de comum entre os três é que são dirigentes do partido do governo, mas não pertencem aos quadros governamentais. Se não pertencem, não podem fazer reunião no Planalto, nem deliberar sobre quem vai para que cargo.

Se não foram nomeados por alguém que tenha responsabilidade formal para isso, estavam ocupando indevidamente o espaço público e exercendo indevidamente funções do governo. É preciso lembrar que um partido, mesmo o do governo, é uma instituição de direito privado. Se não há fronteira entre partido e governo, então há promiscuidade. Mais ou menos como houve no México durante os 70 anos do PRI no poder. Países com democracia institucionalizada não toleram tal anomalia.

Como há um escândalo maior acontecendo, essa denúncia foi ignorada, sem que recebesse do governo sequer a atenção do desmentido. Mas é absolutamente intolerável o uso de dependências do Palácio do Planalto, que abriga e encarna o Poder Executivo, para que pessoas alheias aos órgãos públicos distribuam cargos públicos.

O relato do deputado é de que a diretoria de engenharia de Furnas foi oferecida a um partido e a outro. Uma assembléia da empresa teria sido interrompida pela ministra Dilma Rousseff para mudar a indicação política. Tudo o que foi relatado — mesmo se o mensalão for completa fantasia — mostra uma doença crônica: a falta de fronteira entre público e privado, a promiscuidade no uso da coisa pública para atender interesses privados, o uso de todos os cargos de direção nas empresas públicas, de todos os postos-chaves da administração direta e indireta para arrecadar dinheiro para os partidos.

Há uma vasta lista de irregularidades e anomalias no que ele disse. O trabalho para desmontar o que disse Roberto Jefferson terá que mobilizar todo o governo. Não é possível apenas desqualificar o acusador, até porque ele pôs seu próprio pescoço na corda também. Ele é performático e tornou tudo espetaculoso. Mas, descontando-se a teatralidade, é preciso fazer uma análise fria do que ele disse e esclarecer uma por uma as dúvidas do país. O que está em jogo não é o moribundo mandato do deputado, nem mesmo o destino do atual governo. Mas a fé dos brasileiros nas instituições democráticas.

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