O Globo
O que de mais importante ficou exposto ontem da reunião do Conselho de Ética da Câmara foi a desmoralização total da classe política. Não apenas pela a triste coincidência de que o deputado Roberto Jefferson tenha usado a mesma palavra — hipocrisia — que PC Farias, o finado tesoureiro de Collor, usou quando depôs, quase quinze anos atrás. E nem mesmo pelo comportamento de parte dos deputados, que gritavam uns contra os outros, como se fossem um bando de colegiais inquietos. Definitivamente, ficou claro que não é possível manter essa estrutura de financiamento de campanhas eleitorais, que junta hipocrisia com corrupção.
E nem essa maneira de formar governos de coalizão, distribuindo cargos sem o menor critério e favores, inclusive dinheiro. Entre muitas histórias que Roberto Jefferson contou ontem, com detalhes, está uma que é exemplar: o da substituição de um diretor de Furnas.
Agastado com críticas que teria recebido do governador de Minas, Aécio Neves, que indicara o diretor, o próprio presidente Lula pediu que o PTB encontrasse um nome para substituí-lo, como represália. E, pior ainda, não conseguiu fazer a alteração, pois o diretor que seria substituído conseguiu o apoio do presidente da Câmara, Severino Cavalcanti, que ameaçou o governo de boicote. Pelo relato de Roberto Jefferson, ninguém nomeia dirigentes de estatais sem uma contrapartida para seu partido.
A situação é tão kafkiana que o réu se transformou em acusador, devido principalmente à clara culpa de grande parte dos deputados presentes, e se deu o direito de distribuir absolvições e acusações. Quando, apontando para o plenário, Roberto Jefferson afirmava teatralmente que todos ali sabiam da existência do mensalão, não houve protestos. Os líderes do PT, principal acusado de distribuir verbas para comprar votos na Câmara, simplesmente não apareceram para rebater o depoimento.
A falta de lógica dos que querem desqualificar o depoimento de Roberto Jefferson é tamanha que chegam a ponto de acusá-lo de ter admitido um crime ao relatar que recebeu R$ 4 milhões do PT para a campanha municipal, sem se dar conta de que, ao aceitarem essa versão de Jefferson, não podem desqualificar as outras. E, além do mais, o crime seria tanto do PTB quanto do PT.
O próprio deputado petista Nelson Pellegrino, ex-líder do governo, tentou achar uma desculpa honrosa, transformando o mensalão em um acerto de contas de campanhas eleitorais, o que seria, pelo visto, um erro menor. Para culminar, como o PT vai negar que tenha dado esse dinheiro ao PTB, esse crime vai simplesmente desaparecer nas sutilezas do sistema de financiamento de campanhas políticas.
Dando seguimento ao clima kafkiano, a honra do presidente Lula ficou à mercê dos desígnios do acusado, que o retratou, em diversas ocasiões, como um homem de bem que não sabia o que acontecia nos bastidores da Câmara. Jefferson pôs toda a culpa, pela ordem, no Chefe da Casa Civil, José Dirceu, no tesoureiro do PT, Delúbio Soares, e no secretário petista, Silvio Pereira, a quem chamou de "cúpula do PT".
A situação política é tão delicada que, em nome da governabilidade, prefere-se criar a imagem de um presidente ausente das decisões, desinformado, cercado por assessores que têm autonomia para montar um esquema dessa magnitude, com potencial de corroer a base moral de seu governo. Um homem de bem cercado de malfeitores, um inocente útil manipulado por guerrilheiros leninistas.
Se tudo ocorrer como até agora está sendo montado, não haverá saída para o governo: ou tudo é mentira de Roberto Jefferson, ou o presidente foi traído por seus assessores, a começar pelo chefe da Casa Civil, ministro José Dirceu. O problema é que alguns fatos não combinam com essa tese de traição. A começar pela declaração de Dirceu, que diz que não faz nada sem que o presidente Lula saiba.
Embora seja controvertida a versão de que o presidente Lula chorou ao ser informado por Roberto Jefferson da existência do mensalão, há coincidência quanto à reação do presidente, que teria sido de espanto, ou de "facada nas costas", como definiu Jefferson. Não haveria razão para tanto espanto, pois, segundo declaração do governador Marconi Perillo (PSDB), de Goiás, Lula já havia sido avisado por ele da prática bastante antes desse encontro com Roberto Jefferson.
O fato de que o deputado Roberto Jefferson reafirmou não ter provas do que acusava, não tirou o teor explosivo de seu depoimento. Com detalhes, e dando o tom pessoal de conversas, Jefferson pôs seu depoimento como conseqüência do que vivenciou, e escolheu bem a palavra, para dar peso ao testemunho, embora sem provas.
O mercado financeiro, que não entende nada de política mas adora boatos, ficou nervoso antes do depoimento, fazendo o dólar subir e a Bolsa de São Paulo cair. E manifestou-se aliviado, com a Bolsa subindo e o dólar caindo, pelo fato de Jefferson declarar que não tem provas. Mas, assim como o Palácio do Planalto, o mercado financeiro pode estar cometendo um erro de avaliação.
O processo está apenas no início, e com indícios bastante fortes das irregularidades. Como as malas de dinheiro que a secretária do publicitário Marcos Valério viu saindo da agência de publicidade mineira, com identificação do Banco Rural, citado pelo deputado Roberto Jefferson como sendo a origem do dinheiro que recebeu do próprio Valério para financiar a campanha municipal do PTB.
Entrevista:O Estado inteligente
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