o globo
A decisão do presidente Lula de "abrir mão" de seu principal colaborador é uma indicação da grandiosidade da crise política em que estamos envolvidos. José Dirceu sempre foi um militante petista, e volta para seu berço político para se defender e defender o PT, que de símbolo da ética na política, transformou-se em instrumento de corrupção, pelo menos na percepção da opinião pública, depois das denúncias de esquemas montados nos bastidores dos órgãos governamentais para financiamentos de campanhas e de políticos.
Saindo do Palácio do Planalto, José Dirceu deixa o presidente Lula liberado para fazer a ampla reforma ministerial que estava prometendo e que adiou várias vezes, constrangido pelos laços de amizade de sua extensa vivência petista. É quase certo que teremos brevemente, ou no plenário da Câmara, ou nas reuniões da CPI dos Correios, grandes embates políticos, com Dirceu retomando seu estilo agressivo, o mesmo que o fez controlador das principais manobras políticas do grupo Articulação, que está no poder, como esteve sempre no poder no Partido dos Trabalhadores, salvo um pequeno período em que todos os demais grupos se uniram contra ele e assumiram o comando partidário.
Ao grupo liderado historicamente por Lula coube apenas a secretaria-geral, que foi ocupada por Gilberto Carvalho, hoje secretário particular do presidente. E a Articulação perdeu todas as votações internas nesse período. Essa perda de poder aconteceu justamente no correr de um desentendimento de Lula com Dirceu, que os afastou politicamente. De novo juntos, voltaram ao poder no PT, o grupo colocando em prática a tática do rolo compressor, a mesma usada até hoje, acionada pelo mesmo homem, o até ontem chefe da Casa Civil José Dirceu.
Significativamente, o PT está em processo de substituição de seu diretório nacional e o Campo Majoritário tem nada menos que cinco chapas de oposição ao nome de José Genoino para a presidência. A crise atual pode unir todos em torno de uma solidariedade a Genoino e à atual direção, mas pode, ao contrário, acirrar a oposição de esquerda, que discorda dos métodos políticos e da linha de ação do grupo que está no governo.
É preciso lembrar que a Articulação é o grupo político petista que mais se adaptou às regras democráticas, e decidiu chegar ao poder fazendo alianças e acordos políticos, que hoje são contestados por alas mais radicais. A maneira como esses acordos políticos eram realizados estão também em xeque com as denúncias de corrupção.
Para os militantes petistas, a eleição de Lula não teria sido possível sem o trabalho de articulação política de José Dirceu, o que dava a ele uma autonomia dentro do governo que sempre incomodou o presidente Lula. Nunca deixou de evidenciar suas discordâncias com a política econômica, o que fazia para representar uma parte preponderante do PT e dar esperanças aos inconformados, mostrando que havia quem defendesse teses opostas dentro do governo e, portanto, havia a possibilidade de mudanças.
Com sua saída, e a redução da força do PT no governo como um todo, aumentará a influência do ministro da Fazenda, Antonio Palocci, que é cogitado até mesmo para substituir Dirceu no Gabinete Civil. Lula provavelmente adotará essa solução se se convencer de que a nomeação de outro ministro da Fazenda não deixará dúvidas no mercado quanto à continuidade da política econômica.
Esse aumento de influência de Palocci, por outros lado, será contestado mais livremente pelo militante Dirceu que, para defender-se e ao PT, deverá encontrar temas que unam a maioria do partido e ajudem a incentivar sua militância. Aparentemente, o presidente está reagindo à crise que envolve o PT não como um militante, com preocupações corporativistas, mas como chefe de Governo que precisa, afinal, montar um governo que seja representativo da coalizão pluralista que o sustenta no Congresso.
Há neste momento um grande enigma no ar, e somente com o anúncio completo da reforma saberemos para que lado o presidente está tendendo. Se, por exemplo, o PT perder espaço dentro do Ministério para partidos como o PMDB, poderemos ter indicações do que move o presidente. O papel que terão no novo governo os partidos que estão envolvidos nas acusações de corrupção também demonstrará qual a intenção do presidente. O fato é que o prestígio do presidente Lula, embora em declínio, está montado sobre seu cacife pessoal, independentemente dos partidos que o apóiam. É um apoio suprapartidário, como definem os analistas de pesquisas de opinião.
Para se ter uma idéia de como a população reage às crises políticas, quando estourou o caso envolvendo o assessor do Gabinete Civil Waldomiro Diniz com propinas do bicheiro Carlos Cachoeira, no início de 2004, um dos dados mais significativos das pesquisas de opinião, a confiança do eleitorado no presidente Lula, caiu para 54%. Depois, houve uma recuperação e hoje, embora acima do registrado naquele período, esse índice voltou a cair para 56%.
A popularidade do presidente e a de seu governo também estão em queda, mas Lula aparece descolado da administração federal, em um nível sempre acima. Apesar das juras de fidelidade eterna feitas ontem pelo ministro José Dirceu na sua saída do governo, é de se prever que as relações entre o PT e o governo serão esgarçadas nos próximos meses. O presidente Lula tentando manter a distância que o separa do PT, aos olhos da opinião pública, e o partido tentando defender-se das acusações para retomar a bandeira da ética na política. O presidente Lula tem mais chance de ter êxito, embora não seja previsível o destino de um sem o outro.
Entrevista:O Estado inteligente
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